terça-feira, 4 de agosto de 2009

De Valera e a personalização do Estado

De todas as biografias de políticos que tive a oportunidade de ler, nenhuma se igualou na capacidade de criar uma confusão tão grande sobre o papel de uma personagem histórica do século XX como a do onipresente Eamon de Valera. De 1916 a 1973, por 57 anos, portanto, este cidadão ocupou posições centrais na vida política irlandesa, e certamente, tem seu lugar na História. Exatamente qual lugar é que parece ser o problema. Um pequeno resumo de fatos biográficos e da incrível sobrevida deste pouco conhecido estadista europeu ( o mais longevo do século XX) pode ilustrar.
Para começar, não nasceu na Irlanda, e sim em Manhattan, nos Estados Unidos, em 1882, filho de um traficante de açúcar hispano-cubano chamado Juan de Valeros e de uma irlandesa. E foi batizado como Jorge de Valeros. Mas seu pai morreu em 1887 e sua mãe retornou à Irlanda onde seu nome tomou a forma gaélica-anglo-saxônica de Eamon de Valera. Estudou e se formou na Irlanda. Não se sabe ao certo quando se engajou na luta dos "Voluntários", grupo de jovens e intelectuais que lutavam pela independência da Irlanda do domínio inglês, mas é reconhecido por historiadores que de Valera era um orador e escritor excepcional e certamente durante a sua formação como Matemático abraçou a causa nacionalista irlandesa e tornou-se um católico fervoroso.
Em 1916 foi um dos líderes da "Revolta da Páscoa", uma espécie de tentativa de golpe contra as autoridades inglesas de Dublin e que terminou mal. Os líderes foram presos e condenados à morte. De Valera escapou, por ser cidadão com dupla nacionalidade, e, também porque em meio a uma guerra mundial complicada, os ingleses não pretendiam criar uma situacão sensível com os Estados Unidos. Um dos líderes da "Revolta da Páscoa" foi Michael Collins, um jovem e brilhante camponês de Cork, educado em Londres, que aliou como poucos a capacidade de liderança militar com a administrativa. Collins não foi preso porque era tão hábil que sua figura não era conhecida. De 1916 a 1922, Collins liderou a cena política irlandesa, mesmo por vezes sendo considerado uma espécie de mito. Cathal Brugha e Arthur Griffith também dividiram as atenções e a liderança, raramente questionada, de de Valera pós-"Revolta da Páscoa".
E aqui chegamos a um dos períodos inquietantes de sua biografia. Em primeiro lugar, é sabido que de Valera surtou durante a "Revolta da Páscoa". Sua inabilidade emocional para lidar com confrontos físicos o perseguiria por toda a vida. Em seguida, quando os "Voluntários" se organizaram como partido, o Sinn Fein, e decidiram por manter um braço armado, o IRA, quem sobressaiu de forma assustadora como líder foi Collins. Além de forte e corajoso, Collins organizou as finanças do movimento, inaugurou a guerrilha e montou praticamente sozinho as ações que sacudiram o poder central inglês. Cathal Brugha liderava o gabinete e Griffith as conversações com os representantes de Londres. Observando isso, de Valera decidiu em 1919 ir para os Estados Unidos com o fim de obter apoio da colônia irlandesa, do presidente Calvin Coolidge e de angariar fundos. A guerrilha recrudesceu e de Valera permanecia na América, sem enviar notícias precisas a Dublin. Retornou 1 ano e meio depois, sem apoio o político prometido na bagagem. Amenizou o tom de fracasso da estadia o fato de ter conseguido angariar fundos para o Sinn Fein, curiosamente usando mais a ascendência hispânica do que a irlandesa.
Mas de 1920 a 1921 os irlandeses, liderados por Collins, tinham liquidado praticamente toda a burocracia de governo inglesa em Dublin de forma violenta e incontestável. Londres aceitou negociar um Tratado de Paz em 1921. De Valera, nomeado Presidente pelo Parlamento ( Deáli) graças a uma manobra constitucional, se recusou a ir a Londres para negociar o Tratado. Nomeou Griffith e Collins, entre outros. Liquidou, então, a confidencialidade da figura de Collins. O Tratado, depois de 4 meses de negociação em que Collins acabou assumindo a liderança, não garantiu a independência completa da Irlanda, que teria um Parlamento, um Primeiro-Ministro irlandês, um Lorde Protetor inglês e reconheceria a soberania da Coroa Inglesa. Além disso, o Tratado dividia o país em duas partes, existentes até hoje, sendo que o Norte continuara parte do Reino Unido. De Valera se mostrou irritado com o resultado mas submeteu-o à aprovacão no Deáli. O Tratado foi aprovado por 64 a 57. De Valera abandonou o Deáli levando com ele cerca de 40 parlamentares. O Tratado também foi objeto de sufrágio, e população o aprovou por maioria, com exceção da situação da Irlanda do Norte. Collins assumiu a Presidência e um discurso moderado, surpreendente para quem tinha sido um guerrilheiro tão feroz. De Valera se refugiou no Sul do País e fundou o Fianna Feil, opositor do Sinn Fein. Muitos acreditam que de Valera não foi a Londres porque já sabia que os ingleses não cederiam e não gostaria de trazer a notícia ruim de volta para casa. No entanto, o carisma de Collins fez com que todos entendessem o Tratado como um primeiro passo para a Independência total. Restou a de Valera dividir o País. Outra decisão controversa foi a de atacar navios ingleses em Galway. Churchill ameaçou mandar forças para garantir os interesses ingleses. Collins disse que os irlandeses iriam lutar como pudessem, mas internamente buscava o diálogo com de Valera. Collins foi assassinado em 22 de agosto de 1922, quando seu comboio foi atacado justamente quando ia de Dublin a Cork para um encontro informal com de Valera.
Liam Lynch, sucessor de Collins foi assassinado em 1923, e o Sinn Fein solicitou um trégua ao Fianna Feil. De Valera, num discurso famoso em 1926 afirmou que a trégua era uma vitória do Fianna Feil e se intitulou Presidente do Conselho. A Irlanda estava imersa em uma crise econômica caótica, emigração em massa, ameaça de uma terceira crise de alimentos, e o Palamento (Deáli) ratificou a lideranca do Fianna Feil. A partir daí, até 1973, de Valera seria figura central na política irlandesa, sempre ocupando o topo da estrutura política, mesmo quando seu partido sofreu derrotas.
E, de fato, ao longo dos anos 30, com uma batalha comercial com os ingleses e grande esforço diplomático, a Irlanda, com o nome gaélico Eire, foi reconhecida por diversos países como república. Finalmente, em 1936, o Eire foi admitido na Liga das Nações. O papel de de Valera neste período custou caro aos irlandeses, que continuaram emigrando em massa, mas foi decisivo para o país obter o status de independente, com exceção da Irlanda do Norte.
Mas os episódios controversos continuaram. De Valera apoiou publicamente Francisco Franco na guerra Civil espanhola, permitiu a criação de um grupo fascista dentro do Fianna Feil, reprimindo-o depois, quando um dos líderes, um militar renomado, reclamou o Ministério de Relações Exteriores. Manteve um duro discurso anti-inglês, mas escancarou a economia irlandesa ao poder da libra, após 1936. Oscilou seu humor nas relações com os Estados Unidos, principalmente com Roosevelt. Reconheceu a União Soviética, mas proferiu vários discursos anti-comunistas.
Na Segunda Guerra, de Valera declarou a Irlanda neutra mas estabeleceu um "estado de sítio" disfarçado, o "The Emergency". Teoricamente, a Irlanda mantinha relações idênticas com os Aliados e com o Eixo, mas manteve representação diplomática junto ao governo colaboracionista de Vichy, o que equivale a reconhecer a legitimidade do mesmo. Até Pearl Harbour, a Irlanda franqueou suas águas a incursões de submarinos alemães. Após Pearl Harbour, franqueou seus portos para que navios aliados fizessem reparos e seu espaço aéreo à RAF, decisão esta que só se tornou conhecida a poucos anos.
A maior mancada de de Valera foi no dia do suicídio de Hitler. A Irlanda e Portugal foram os dois únicos países do mundo que declararam luto oficial pela morte do Fuerher. Portugal, sob a tutela de Salazar, colocou as bandeiras a meio-pau e só. De Valera fez uma visita oficial à representação diplomática alemã e participou da solenidade em memória a Hitler em Dublin. Conseguiu irritar até os suíços, igualmente neutros, que o censuraram publicamente. Mas, quinze dias depois do suicídio de Hitler, a Alemanha capitulou. De Valera, então, num espetáculo de incoerência inigualável, ordenou então que as comemorações "pela paz" tomassem as ruas do país. Foi a maior manifestação pró-inglesa da história da Irlanda, com mais de dois milhões de pessoas nas ruas bebendo e empunhando bandeiras dos Aliados, inclusive a 'Union Jack". Em um discurso ao fim da guerra, Churchill, um velho inimigo, criticou pesadamente a postura de de Valera, que o respondeu num discurso considerado histórico na Irlanda reiterando que seria impossível para a qualquer país colaborar com quem o escravizou por 700 anos, mesmo que isso parecesse o mais certo a fazer.
Em 1949, os Estados Unidos incluíram a Irlanda no Plano Marshall, e de Valera fez as pazes com de Gaulle. Em compensação, fechou a representação diplomática em Moscou. Cabe ressaltar que os russos, mesmo após Lênin, tiveram boas relações com os escoceses e irlandeses, por conta da pesca e de empreendimentos marítimos conjuntos. Mas o Comunismo era intolerável para o direitista e católico de Valera. Livros foram proibidos, a censura, que, já vigorava desde a década de 30, passou a ser dura. De Valera se alinhou entre os mais ferrenhos anti-comunistas dada que a "vocação católica da Irlanda seria eternamente incompatível com o socialismo".
A década de 50 viu de Valera no ostracismo por alguns anos. Não foi um afastemento total já que, a esta altura, ele era um herói vivo da independência do domínio britânico. Em 1959, assumiu a Presidência da Irlanda até 1973, sempre por eleições. Foi responsável pelo ingresso da Irlanda no Mercado Comum Europeu, embrião da Comunidade Européia. Aproximou-se dos Estados Unidos e da Inglaterra, tendo sido recebido várias vezes pela Rainha Elizabeth II.
Durante a década de 60, percebendo que o momento pedia outra postura, reabilitou todos os heróis do período de 1916 a 1936, incluindo desafetos célebres, como Griffith e sobretudo, Collins. Sobre este último, em 1966, de Valera disse que o povo irlandês reconhecerá o seu papel fundamental na independência, e seu martírio, e, a "seu juízo, colocará este peso nos meus próprios ombros". Uma forma muitíssimo elegante de reconhecer culpa, senão direta, já que foi provado que de Valera não ordenou o ataque que matou Collins, pelo menos por omissão, pois ele sabia que no trajeto entre Dublin e Cork haviam várias emboscadas prontas.
De fato, de Valera é um herói irlandês, apelidado de "Long Fella", ou o camarada para sempre. Os historiadores se dividem entre os seus erros e acertos. De Valera alcançou o seu objetivo como estadista, transformando a Irlanda, ou pelo menos 80% do seu território, em país livre e soberano. Questionam-se apenas se o preço pago pelos irlandeses poderia ter tido uma boa redução. E, se nas suas convicções nacionalistas não estava embutida uma ambição doentia e uma vaidade perigosa.
A propósito, o apelido de Collins era "Big Fella", ou o grande camarada.
Talvez em dupla, os camaradas fizessem mais, em menos tempo e expondo menos os irlandeses. Talvez com mais espírito de estadista e menos de ser o "espírito irlandês encarnado" ( como ele se definiu nos anos difíceis entre 1916 e 1922), melhor, mais nobre e menos controverso fosse o seu legado.
Como último comentário, um dado macro-econômico. Durante a vida de de Valera, o maior crescimento anualizado do PIB irlandês foi de 3%, com média de 1%. Depois de de Valera, a média passou a 3%, número chinês para a Europa.
Morreu em 1975, com 91 anos de idade. O clima em Dublin, no dia de sua morte, era difícil de definir. Mais ou menos como sua conduta.

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