sábado, 27 de fevereiro de 2010

Europa

Na minha modesta visão de apaixonado pela História e visitante bem mais que casual ao continente europeu, a Comunidade Européia se estabeleceu quando, quase simultaneamente, os dinamarqueses decidiram entrar, os suíços decidiram ficar de fora e os ingleses, mais ou menos, sem adotar a moeda única. Logo depois veio o Euro. Pronto. Fim dos escudos, pesetas, francos, marcos, liras. Ficaram os euros, as libras e o franco suíço.
A Europa perdeu um pouco do charme. Era parte da viagem voltar com moedas de coroas suecas ou florins holandeses em meio aos dólares trocados em cima da hora e que tinham liquidez no Brasil.
Além disso, algumas fronteiras acabaram. Certa vez reparei que já devia estar há uns 30 quilômetros território holandês adentro, vindo da Bélgica, graças a uma bandeirinha numa casa à beira da estrada. Outra ocasião, entrei em Luxemburgo sem querer.
Ficou uma coisa assim, meio Mc Donald's das transações. Tudo em euro e nas maquininhas de cartão.
No entanto, não perco o encanto pelo pedaço de terra que chamamos Europa. Acho incrível viajar a mesma distância que do Rio a SP e passar por uns três países com identidades culturais próprias. E, claro, o sonho europeu de uma Grande Europa, pensado por estadistas sérios e lunáticos, desde o Império Romano, passando por Carlos Magno, Napoleão e Hitler, até chegar a Maastricht ( que é uma cidade e não um sujeito, para, se eventualmente a União Européia naufragar, a ideia não ficar personalizada), não poderia dar certo com tanta diversidade cultural, centenárias, e polvilhadas por algumas guerras por vezes traumatizantes.
E eis que vemos que a dita União tem seus problemas. E não poderia ser diferente. Quem já teve a oportunidade de visitar alguns países europeus algumas vezes, sabe que distinguir Portugal da Alemanha, como se distingue o Arkansas de Massachussets, para citar o espelho americano de "estados unidos", é muito mais fácil. Portugal é Portugal. Um país com uma história de unidade nacional de mais de 800 anos, que já foi potência mundial, sucumbiu na Revolução Industrial aos juros ingleses e teve um século XX muito apagado por conta de convulsões políticas internas. Já a Alemanha é país há pouco mais de 120 anos e mesmo assim, suas fronteiras mudaram completamente, já foi algoz e saco de pancada em guerras horripilantes, foi dividida ao meio por questões ideológicas e, na atual situação política, tem apenas 20 anos de idade. Além disso, a Alemanha importou a Revolução Industrial da Inglaterra na marra, aproveitando-se de uma população amante da manufatura e das coisas que requisitam raciocínios elaborados, aliás, como sua língua. E nunca foi financiada pela City londrina.
E a Grécia ? A situação da Grécia é parecida com a de Portugal, mas elevada ao cubo. A Grécia passou anos muito mais ligada ao Oriente que ao Ocidente, às voltas com vizinhos otomanos furiosos, entrões e sangrentos. Também na religião, a Grécia seguiu o caminho do catolicismo ortodoxo. Aquele, de Constantinopla e não o de Roma. A Alemanha foi o berço do Protestantismo e do pensamento moderno. A Grécia foi o berço da Filosofia antiga e parou. Afinal, o que as dracmas gregas tinham a ver com os marcos alemães ? Nada. Absolutamente nada.
Justificou-se trazer alguns países para o bloco único europeu com base exclusivamente em indicadores macro-econômicos. O deficit público deve ser X, o Investimento Y, a meta de inflação é Z. A Eslobodânia do Oeste, atingindo esses parâmetros, pode se candidatar a entrar para a União Europeia, desde que fique na Europa mesmo, claro.
Agora essas equações estão um pouquinho desequilibradas em Portugal, Espanha, Itália, Grécia e, para mim, os países do Leste tipo Hungria e Eslováquia, em breve terão os mesmos problemas.
E como se resolve ? Não existe a figura da suspensão da afiliação ao bloco. Então alguns remedinhos devem ser aplicados.
No caso grego, o governo gastou muito. Ao que tudo indica, o problema teria começado nos gastos para realizar a Olimpíada de 2004. De lá para cá, a Grécia se sentiu uma espécie de França de clima ameno.
Mas serviço público francês é o serviço público francês. E o serviço público grego é o serviço público grego. Gasta muito e mal.
O remédio é amargo. Fim de privilégios, achatamento salarial, aumento de juros, aumento de tarifas públicas. E o que foi feito em fevereiro parece que foi pouco. A navalha vai ter que entrar mais fundo na carne. Os gregos, que já não gostaram muito, aturarão em paz um tremendo arrocho orçamentário ? E quando o problema chegar na Espanha ? E na Itália ? E na Irlanda ?
Isto porque vai chegar. Não tenham dúvidas. A economia inglesa está calcada em serviços e num sistema financeiro arrojadísimo. A alemã, nas exportações. A Bélgica vive de exportar chocolates, cerveja e ficar discutindo se a língua principal é o francês ou o flamengo. Já a Espanha tem uma economia diversificada, industrializada e de serviços, principalmente tursmo. A Itália, que se parece mais com um aglomerado de países menores, tem tradição industrial no Norte, agrícola no meio e no meio-Norte, naval na costa do Golfo de Marselha e mercantil na costa do Adriático, e pobreza no Sul. A Irlanda virou o centro do"boom"imobiliário britânico.
Como, com essas diferenças, se faz todo mundo andar em passo sincronizado ? Me parece impossível.
A chacoalhada financeira de 2008 fez com que os governos das economias centrais lançassem mão de seus recursos para reestruturar o sistema. A autonomia do Banco Central alemão é totalmente diferente da do Banco Central Grego. E não adianta Estrasburgo ( sede da Comunidade Européia, junto com Bruxelas) impor isso ou aquilo porque quem elege o Chanceler alemão são os alemães e quem elege o Péricles da vez na Grécia são os gregos. E pronto.
O caipira do Arkansas e o intelectual de Massachussets usam o mesmo dólar e votam no seu governador, mas também no Presidente Republicano ou Democrata da vez.
Na Europa não. A União Europeia está diante de seu grande desafio. E deve estar pronta para manter barreiras fiscais e aumentar barreiras monetárias e criar proteção, talvez até recriando moedas assassinadas. O dracma, por exemplo, parece sério candidato a voltar a existir.
Dura decisão. Ou derruba-se o euro, ou permitem-sem governos oportunistas de crise na Grécia, Irlanda, Islândia, Espanha...( e isto porque o da Itália, com Berlusconi à frente, já é).
O que será da Europa ?

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Santos e Demônios

O período de início de ano normalmente é árido em boas notícias do esporte. O  futebol está a meia-boca, com torneios estaduais de tiro curto e poucos bons jogos. Outros esportes simplesmente ficam paralisados. O automobilismo entra nas especulações, mas sem corridas, e outros simplesmente somem. Os de inverno esquentam terrivelmente, mas, para nós tropicais, dowhnhil e slalom são termos desconhecidos.
Pelas bandas de Pindorama há também a folia momesca que paga tudo e todos do noticiário e que, neste ano de 2010 trouxe pelo menos a novidade de um governador passar o Carnaval fantasiado com o pijama listrado de preto-e-branco.
Mas duas excepcionais epopéias do esporte ocorreram neste modorrento e acalorado verão sub-tropical. Não aconteceram em esportes exatamente populares no Brasil. Mas em esportes para lá de profissionalizados, provocando a iminente reflexão sobre a profissionalização do esporte colaborar para definhar seus valores mais nobres. Ou não.
Para um lado da balança, vai a impressionante história do New Orleans Saints, o time de futebol americano que levantou, da forma mais improvável, desde a criação do Super Bowl, a taça de número 44 desta disputa que é considerada uma das de maior audiência e mais esperadas do mundo. Foi há uma semana.
Os Saints ( Santos) de New Orleans bateram os Colts, de Indianapolis, em jogo único e levaram pela primeira vez o Super Bowl para a Louisiana. Este Super Bowl, embora decidido em 2010, é considerado o da temporada de 2009.
Então vamos recapitular alguns fatos da trajetória do clube. Fundado em 1 de novembro de 1967, dia de Todos os Santos, os Saints assim foram batizados e sua sede, New Orleans, era a identidade da maioria católica. Aos olhos dos americanos do Norte, Louisiana, embora pitoresco, se parece com uma sucursal do Terceiro Mundo em pleno território norte-americano. A trajetória dos Saints sempre foi irregular. Sempre foram considerados os "underdogs" das Confederações de Futebol Americano. Mesmo tendo batido um recorde histórico, uma vitória por 47 a 0 sobre os Atlanta Falcons na década de 70, os Saints nunca entraram em nenhuma temporada apontados como favoritos ou sequer candidatos.
A única característica dos Saints apreciada era seu estádio, o Superdome. Como o final da temporada de futebol americano dos Estados Unidos se dá em pleno inverno, os estádios do Sul do País costumam receber as partidas nobres de fim de temporada. O estádio de New Orleans era praticamente o único orgulho verdadeiro e unânime dos Saints.
Era. Em 2005, New Orleans sofreu com os terríveis efeitos do furacão Katryna, inclusive com desconfianças sobre a atuação do Governo Central antes, durante e depois que o furacão destruiu a cidade. E o Superdome. O estádio teve sua cúpula arrancada e parte de sua estrutura abalada. Não obstante, serviu de hospital de campanha e abrigo para milhares de pessoas.
Os Saints passaram duas temporadas sem poder jogar em seu estádio, mandando seus jogos em Baton Rouge, South Dakota, Florida e outros lugares. A cidade estava em trauma profundo para se preocupar com o esporte. Os Saints foram mantidos nas Conferências por sua história e tradição, pois sequer atingiram os requisitos mínimos para estar na elite do futebol americano, esporte caríssimo, que movimenta milhões em  patrocínios e apostas legítimas. Para piorar tudo, em 2007, os Saints bateram seu recorde negativo, vencendo apenas quatro partidas na temporada. Em 2008, os proprietários dos Saints concluíram a recuperação do Superdome e trouxeram alguns jogadores caros dos bem sucedidos Green Bay Packers, San Francisco 49ers. e New England Patriots. Mas a campanha deixou a desejar.
Em 2009, tudo parecia se repetir para os Saints, mas as vitórias vieram e os milagres dos santos da crença   anglo-francesa da Louisiana começaram a operar. Para começar, com tudo quase pronto para a estréia, outro furacão, mais ameno, deslocou o Saints para uma pré-temporada em Indianapolis. Logo onde !!!
Ao voltar, bateram o Detroit Lions por 24-20, no remodelado Superdome. Com uma sequência regular, os Saints acabaram por chamar atenção ao baterem na casa dos adversários os muito mais bem cotados Philadelphia e Green Bay nos play-offs e foram às finais da NFC contra o Arizona Cardinals aplicando um chocolate que deixou meio mundo boquiaberto.
Na final, contra os Colts de Indianapolis, os mesmos que lhes cederam o estádio no início da temporada, os Saints saíram perdendo e feio. Os Colts chegaram a abrir 14 pontos, equivalentes a dois touchdowns, a jogada de sete pontos que vale mais pontos no futebol americano. Depois do intervalo, os Saints voltaram milagrosos. Reverteram a vantagem e no último quarto ninguém duvidadava mais da vitória.
A final foi realizada uma semana exatamente antes do Carnaval, que nos Estados Unidos é mais intensamente comemorada justamente em New Orleans, na celebração chamada Mardi Gras.
New Orleans está transformada. Recuperou seu orgulho. A percepção de ser uma ponta de Caribe encravada em território americano deu lugar a uma fantástica exibição de orgulho da cultura particular da Louisiana, o creole, o francês falado com sotaque estranho, o negro, o jazz, o blues. O que esta parte do país colaborou para a riqueza da riqueza maior dos Estados Unidos, chamada de "melting pot"desde a década e 30, e por vezes esquecida, estava marcada, relembrada e de novo, em moda.
New Orleans e seus santos foram a melhor notícia do esporte em janeiro. O Superdome volta a brilhar orgulhoso. A cidade comemorou o Mardi Gras mais efusivo de todos os tempos. O orgulho não estava na vitória. Estava em voltar ao Mapa. Ser esquecido é pior que que ser pouco celebrado. New Orleans não quer ser celebrada. Ela e seus santos não querem ser esquecidos.
E um detalhe. Os grandes nomes do Saints vieram de outros times. Os Saints provaram que podem sim encarar o Primeiro Mundo. E confesso que, por ter visitado a cidade em 2001 e ter tido a sensação de estar numa região carregada de preconceito, entendo perfeitamente o que eles sentem. Podem se sentir norte-americanos de novo. E o esporte, em quatro horas de um jogo que,  para mim, parece mais uma brincadeira de pique de escola com regras rígidas, alta tecnologia e um monte de juízes listrados, ou seja, não me diz nada em termos esportivos, me trouxe a verdadeira emoção da vitória esportiva.




Por outro lado, também tivemos outro evento que atrai a atenção do mundo todo, que foi a disputa da 33a. America's Cup, o troféu disputado desde 1851, e considerado o topo da carreira de um velejador. A edição 2010 foi única. E aqui, o que sobrou em New Orleans, faltou: santo. Graças a um controverso papelucho denominado Deed of Gift, escrito pelo último tripulante vivo do veleiro America que ganhou o troféu presenteado pela Marinha Britânica na primeira disputa ( daí o nome), a disputa segue rituais muito próprios. O vencedor tem prerrogativas, tais como escolher onde vai velejar e até elencar o desafiante da próxima disputa. Pode até decidir se vai ou não colocar em disputa. Como a America's Cup virou um tremendo evento esportivo de mídia, propaganda e público ( estima-se que só as Olimpíadas. o Super Bowl ( ver acima) e a Copa do Mundo tenham mais público que as regatas da America's Cup, que desbancou a Formula 1 com a edição de 2007), ninguém é suficientemente maluco para levantar o troféu, colocar em cima da lareira e ficar olhando até morrer e deixar passar oportunidades de faturar uma  quantia interessante e atrair meio mundo para seu umbigo. Ou seja, de três a quatro anos, o vencedor bota a cobiçada taça em disputa, sempre cheio de prerrogativas.
Pois bem, o último vencedor foi um improvável barco suíço, o Alinghi, inscrito oficialmente pelo clube Societé Nautique de Genéve. Na prática uma empresa do herdeiro de indústrias químicas e farmacêuticas ítalo-suíço Ernesto Bertarelli. O resultado de 2007 em si, foi fantástico. Era a primeira vez, em mais de 160 anos de disputa do troféu, que um barco europeu o conquistava, sendo o troféu originalmente concebido por um país europeu. Expandiu a disputa da AC das quase eternas raias norte-americanas, australianas e neo-zelandesas para o Mediterrâneo.
Mas Bertarelli começou a exagerar nas exigências. E foi contra atacado pelos americanos do sindicato BMW/Oracle/Sun, que pelo simples nome combinado, dispensa maiores comentários sobre sua disposição financeira de levar a briga até o fim. Até o fim da disputa da Taça, creiam. O tal Deed of Gift, é, na prática um testamento. E foi registrado em New York. Ou seja, qualquer contestação, é apreciada pela Corte de NY. Não consigo contar quantas apelações aconteceram nos dois últimos anos . A coisa foi tão confusa que até a raia escolhida, nos Emirados Árabes. foi mudada por decisão judicial. Só que, nesse meio tempo, um dos barcos, o defensor Alinghi, chegou a ser transportado até os Emirados, apar ter que voltar ao Mediterrâneo, ao largo de Valência, onde a prova seria enfim disputada.
Do lado dos americanos, os problemas não foram menores. Com a decisão do defensor Alinghi em correr com um catamaram, os americanos optaram por um trimaram, com mesmo comprimento, mas simplesmente gigantesco em tudo. A primeira versão do monstro de três cascos foi para a água em San Diego e se desmanchou com um vento de 9 nós !!! Na correria para aprontar um barco, os americanos resolveram reeditar um conceito da década de 80: uma asa rígida em lugar de uma vela. E que asa ! Maior que a de um Jumbo 747 ! O barco em sua versão final quando foi para a água parecia um daqueles projetos saídos dos laboratórios Wayne. Se fosse todo preto e tivesse o morcego estilizado eu diria que passaria tranquilamente por um delírio de criação de Hollywood para o Batman.
Para tornar a coisa mais chatinha ainda, resolveram que a disputa seria em melhor de três regatas. Com projetos tão distintos, a regata 1 seria decisiva, ou seja, não era uma questão de ver quem velejava melhor, mas quem tinha tido poder de fogo de ter concebido o projeto melhor.
Os monstros foram para a água e o barco americano simplesmente pulverizou o suíço, se dando ao luxo de velejar alguns trechos somente com a gigantesca asa rígida e sendo muito mais rápido que o adversário.
Demoníaco. Não precisamos mais do talento de velejadores para a disputa do troféu mais cobiçado do esporte e sim quem tem melhores advogados e tem mais dinheiro para desencravar da galeria de protótipos esquisitos da NASA, aquele que vai ser dominante.
Ao final da disputa, sinalização de que tudo mudará na próxima edição, garantida por vencedores e vencidos em apertos de mão midiáticos. Voltarão as regatas prévias entre desafiantes, os barcos deverão consumir menos dólares e mais talento...não sei...o ego das pessoas, e os times Alinghi e BMW/Oracle tem deles de sobra, quando exacerba, é a mais exuberante demonstração de infração conjunta ao Sete Pecados Capitais, cujo motor, sempre, é a Vaidade.
E, num esporte que aprecio, e eventualmente pratico, e por isso, teria meu envolvimento garantido, senti muito pouco prazer em ver o resultado. Fosse de quem fosse a vitória.

O esporte tem um Céu e tem um Inferno.  Tem Santos e Demônios.