domingo, 8 de novembro de 2009

O Muro caiu, todo mundo viu, mas eu não

Fazem 20 anos da chamada "Queda do Muro de Berlim". Nestes 20 anos muita coisa foi analisada, estudada, reconstruída e elocubrada sobre o que poderia ter feito, num espaço curto de horas, aniquilar uma barreira política e ideológica que durava mais de 30 anos.
Como sempre, meu compromisso com precisão de dados, fatos e versões será pequeno. Simplesmente porque os dias compreendidos entre meados de outubro e o Natal de 1989 serão sempre inesquecíveis para mim.
Em outubro de 1989, minha ex-mulher estava grávida de nosso primeiro filho. A previsão do nascimento dava conta de algo entre 25 de outubro e 5 de novembro. No início de outubro tive de fazer uma viagem rápida a Londres. Quando cheguei lá, passado um dia ou dois, as imagens de alemães orientais lotando trens para a Hungria e de lá para o Ocidente passavam repetidamente na televisão. Um mês antes, a Polônia havia aberto a fronteira, com a vitória nas eleições do Solidariedade. Mas o êxodo de poloneses era pequeno.
Os húngaros então, deixaram a fronteira com a Áustria aberta. Poucos húngaros foram ao Tirol até porque nem passaporte tinham. Mas os alemães orientais vislumbraram um ardil. Orientais ou ocidentais, eram alemães. Hungria e Áustria eram escalas para os destinos na então Alemanha Ocidental.
Voltei ao Brasil com as imagens na cabeça. Aquilo não iria parar por ali. Num encontro de líderes do Pacto de Varsóvia, Gorbatchov ignorou solenemente Erich Honecker, da Alemanha Oriental e se esmerou em conversas  com húngaros, tchecoslovacos e poloneses.
Nesse meio tempo, nasceu o Guilherme, em 31 de outubro de 1989. Internado no "Spa para pais novatos" da Clínica São Vicente, na Gávea, Rio de Janeiro, acompanhando mãe e filho que passavam otimamente bem, não desgrudava os olhos dos noticiários.
Os trens cada vez mais abarrotados. Protestos de uma Alemanha unida cada vez maiores. Líderes comunistas calados e acuados.
Quatro dias depois, a recém incrementada família voltava para casa. E eu, ao trabalho.
Primeira notícia ao chegar em casa e ligar a televisão: todo mundo em cima do muro, celebrando o fim da divisão.
Primeira notícia ao chegar no trabalho: reunião em Haia, na Holanda. Fiquei dividido. Meu filho recém nascido e minha mulher em casa, sem muitos sintomas de síndrome pós-parto. Aceitei ir, com muito medo de dar a notícia para a nova mamãe. Mas vislumbrando a possibilidade de chegar perto daquele momento histórico.
Embarquei num vôo da Varig que fazia Rio-Paris-Amsterdam. No Galeão, as imagens eram daquele povo todo alegre em cima do Muro, e de caras entre consternadas e surpresas de políticos. Em Schiphol, idem
Nem me lembro do que fiz em Haia. Aluguei um carro minúsculo e fui para a Alemanha. Minha intenção era ir a Berlin. Tolinho. Quando cheguei a Dusseldorf soube que tudo estava bloqueado. Mas o mais impressionante não foi a frustração. Foi sentir o clima. A tradicional sisudez alemã dava lugar à euforia em alguns e a um pessimismo em alto grau surpreendente em outros. Os eufóricos celebravam a possibilidade de reunificação do País. Os pessimistas tinham medo de mudanças, bruscas, num país que as teve em sequência no século XX, sempre traumatizantes.
Lembrei de meu filho pequeno e da minha ex-mulher. Vi que não viria muito mais do que já havia visto. Quem conhece a Alemanha sabe que é impossível imaginar a Alemanha desorganizada, confusa, tumultuada. Pois estava. Fiquei preocupado e voltei ao Brasil no primeiro vôo, e passei a acompanhar os fatos pela televisão mesmo ( não existia internet, muito menos twitter, é bom lembrar).
Mas aqueles dias não terminariam na Alemanha. Como castelo de cartas, uma a uma das repúblicas comunistas ruíram. A mais marcante foi a da Romênia, bem no Natal de 1989. O ditador Nicolau Ceausescu foi discursar na sacada do Palácio Presidencial e recebeu estrondosa vaia. Se retirou da sacada e sumiu. Cinco horas depois, ele e a mulher estavam presos. Julgamento transmitido pela televisão. Ceausescu e a estranha mulher humilhados e surrados em frente às câmeras. Doze horas depois, estavam sendo encaminhados a uma sala para serem...enforcados ! E foram, ao vivo e a televisão ainda mostrou os corpos com pescoço quebrado e olhos esbugalhados. Chocante.
Aqueles dias não saíram da minha memória. Fiquei obcecado por visitar aqueles países. A primeira chance veio em 1993. Aluguei um carro e dirigi sozinho de Amsterdam a Berlin, em um tiro só.
Achei que, em quatro anos, já haviam despejado dinheiro suficiente para melhorar Berlin Oriental. Errei. Continuavam sendo duas cidades. O lado oriental povoado por veículos Trabant, pessoas com expressão sofrida, roupas velhas, sujeitos estranhos, vendedores de souvenirs comunistas ( até peça de blindado russo podia ser comprada). Por questão de tempo, passei poucos dias, mas era a minha primeira ida a Berlin e foi inesquecível.
Depois voltei em 1995. Mesmo roteiro automobilístico Amsterdam-Berlin, mas, desta vez, com um amigo. A estrada em antigo território comunista estava melhor. Mas Berlin Oriental continuava quase igual. A mesma gente com semblante sofrido, roupas surradas e os imortais Trabants. O metrô tinha sido interligado, mas quando se entrava no antigo lado oriental a velocidade do trem caía à metade. As estações eram cenários de filmes tipo "O Albergue". Do lado antigo ocidental, vi profusão de mansões, gente bonita, shopping centers novos, Mercedes-Benz e BMW novos.
Arriscamos uma ida a Dresden. A cidade com história trágica: já tomada e pacificada pelos soviéticos na II Guerra foi alvo do mais violento bombardeio aliado não-atômico. Pelo simples motivo de destruir o legado artístico e cultural da cidade que abrigou uma das mais afamadas Universidades da Europa e que foi simplesmente o centro da música durante 5 séculos. Só vi prédios cinzentos em estilo mesclado Stalin-Mobutu-Niemeyer. Ou seja, o planejamento do Niemeyer, a austeridade do Stalin e o acabamento do Mobutu. Terra arrasada. Identidade alemã inexistente e dinheiro, bem, dinheiro dos ocidentais. Os orientais continuavam em estado pré-capitalista.
Fui à recém criada República Tcheca. Apesar de Praga ter renovado minhas esperanças de que o legado comunista teria um fim não muito longo, nas estradas proliferavam prostitutas e tudo o que se pode imaginar ligado à pornografia.
Voltei mais vezes, principalmente entre 1996 e 2000. Melhoras daqui e dali. Mas não adiantava, a divisão era visível. Desde 1989, a população da antiga Alemanha Oriental encolheu em dois milhões de pessoas, mesmo com investimentos pesados em cidades como Dresden e Leipzig. A crise de 2008 atingiu em cheio os países da antiga Cortina de Ferro. Uma viagem de Londres a Beograd por exemplo, é quase tão chocante quanto ir da Zona Sul do Rio de Janeiro até o Complexo do Alemão.
Hoje surgem detalhes. O muro não caiu exatamente. Um oficial do "check-point" Charlie, aliás o ponto de passagem de um lado para o outro, e não o Portal de Brandenburgo, teria interpretado uma ordem de dispersar a multidão como deixar a multidão passar para o outro lado.
E que o colapso comunista era inevitável. O deficit do sistema comunista era financiado com dinheiro de abastados capitalistas ocidentais. E o dinheiro secava e a carestia no lado comunista crescia. Os governos precisavam ou exportar gente ou importar insumos para os países não pararem. E Reagan sabia muito bem disto, por isto teria discursado no mesmo ponto simbólico do Portal de Brandemburgo em 1987, ao alcance de rifles russos, exortando os alemães a derrubarem o muro.
Seja como for, talvez tenha sido o momento simbólico ( tipo "Queda da Bastilha" e "Grito do Ipiranga") da História que vivi mais de perto.
E, apesar de tudo, da emoção da hora, da adrenalina de tentar chegar a Berlin, de comprar bugigangas de  soldados russos mutilados, de viajar Eslováquia adentro vendo camponeses que talvez nunca tenham ido ao dentista, de ver soldados sérvios de 2 m de altura intimidando camponeses croatas, bósnios, albaneses e outros, enfim, de ir à Europa e ver miséria e drama, hoje posso contar que vi o episódio.
Mas não vi ainda a História mudar.

6 comentários:

  1. Parabéns pela bela narrativa

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  2. Parabéns pela bela narrativa.

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  3. Aqui estou!
    Bacana Luiz,uma narrativa em q vc mescla fatos históricos recentes (com riqueza de informações) com sua história pessoal,tornando a leitura bem aprazível.
    Gostei!

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  4. Parabéns ,mais uma vez. Passar p. os mais jovens a emoção de viver em momentos históricos é importante e decisivo p. a vida deles e vc consegue de forma clara e fácil.

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