terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Muricy revogou a "Lei de Muricí"

Dito popular famoso quando a situação se desenha algo complicada e é impossível articular ação conjunta ou em grupo: "Agora é a Lei de Muricí, cada um por si".

Pois um personagem egresso do cada vez mais egocêntrico e estelar meio futebolístico, que chega de fato, por vezes, a provocar indignação com as extravagâncias e malfeitorias de algumas figuras típicas do meio do esporte, surgiu como padroeiro de que o referido ditado popular prega. E, curioso, tem o nome que serve à rima.

Atende o cidadão pelo nome de Muricy Ramalho, e sua atual profissão é a de técnico de futebol. Antes da digressão sobre a revogação da Lei, faz-se necessário um parênteses sobre uma característica deste pretenso blogueiro: eu torço pelo Fluminense, dois mil anos antes do meu nascimento eu já torcia pelo Fluminense, e mais que isso, fui sócio, e atleta do mais alto nível de mediocridade, defendendo as três cores que traduzem tradição. Portanto, sou muito pouco neutro ao falar do Fluminense. E, talvez, sempre o serei.

Mas o mote deste texto não é o fato de o Fluminense ontem ter conquistado, após uns bons vinte e seis anos recheados de episódios tristíssimos, o título de campeão brasileiro de futebol de 2010.

As linhas são dedicadas a um personagem deste título sim, mas não no seu mérito na conquista. Mérito, aliás, que a esta altura é incontestável. Não há voz que se erga e diga: o técnico Muricy Ramalho errou aqui, mudou mal ali, pensou errado acolá, coisa que aliás é bem típico do brasileiro, que como todo mundo sabe, nasce técnico de time de futebol.

As linhas são dedicadas a um profissional que impressiona por uma correção, coerência, coragem, força, controle emocional, inteligência e capacidade de reverter adversidades que bem poderiam caber num super-herói, ou num protótipo de super-herói, um herói humano como muitos outros líderes.

Para ficar apenas no campo do esporte, no que Muricy deixa a desejar se comparado a um Vanderlei Luxemburgo, um Zico, um Bernardinho, um Beckenbauer, um Fritz Walter, um Stanley Rous, um Cruijff entre outros e heresia das heresias, a um Pelé ? Na minha opinião nada, e, bem dito, talvez supere em muito alguns dos enumerados.

Nunca vi em minha vida um cidadão que se dedicou a uma pugna desportiva de proporções maratonísticas, como o Campeonato Brasileiro, tendo o conquistado ao final e se auto-elogiar sem modificar em absolutamente nada a expressão, o tom de voz e a lucidez quanto elogiou Conca, Washington, Leandro Euzébio e Fred ( sim, Fred, o quase candidato a "vilão por omissão do ano"). As declarações em caso de vitórias são sempre de divisão de responsabilidaes e ajudas inestimáveis, ressaltando o grupo e o trabalho em equipe, mesmo em esportes individuais ( Guga e Larri Passos são o exemplo que mais me reluz neste quesito). Recentemente, vimos um Sebastian Vettel chorar ao ser campeão mundial agradecendo a meia população da Áustria a colaboração recebida pelo título mundial de Fórmula 1. Vettel se cansou de fazer besteira o ano todo, inclusive bater no companheiro de equipe numa disputa pelo primeiro lugar em uma prova que tirou os dois carros da equipe da corrida. Mas dirigiu como ninguém na hora que importava. Eu não ouvi ele dizer que ele sabia ser mais rápido que os rivais quando o era. Apesar de ser velocidade absoluta.

Muricy falou, calmo, frio, quase como um diagnóstico médico banal: "minha importância para o título foi grande, quando o time precisou de um técnico eu fui o técnico que o time precisava, atuei nas dificuldades, arrisquei, investi em jogadores que andavam desacreditados e fizeram um belo trabalho, tenho certeza que minha contribuição foi decisiva" . Tá bom, coloquei entre aspas um texto que ele não falou. Mas que bem poderia ter sido falado por Muricy se somadas suas declarações logo após o último jogo do campeonato.

E quem ousou contestar ? O próprio tom com que o auto-elogio foi proferido não deu brecha a questionamento algum. Até mesmo quem poderia ter alguma autoridade para falar alguma coisa sobre algum momento em que a liderança de Muricy deixou a desejar, fez coro ao técnico, o jogador mais valioso do elenco na conquista, o argentino Dario Conca. O lacônico argentino simplesmente declarou nunca haver trabalhado com um técnico tão agregador quanto Muricy.

O técnico do Fluminense se viu em grandes enrascadas ao longo do campeonato. A primeira delas, logo após a Copa, o convite de Ricardo Teixeira, aberto, na imprensa, para que ele assumisse a Seleção. Naquele momento, o Fluminense já liderava o campeonato e Muricy tinha seu nome gritado nas arquibancadas. A torcida tricolor acusou o golpe. Eis que veio a surpresa. Muricy declinou do convite. E, meses depois, com todas as suposições estudadas e analisadas, afastou-se a possibilidade de qualquer interferência ameaçadora de dirigentes ou patrocinadores do clube, ou falta de acordo financeiro. A história foi clara. Muricy foi ético. Se a CBF procurasse o Fluminense e negociasse com o clube a rescisão do seu contrato e aí sim, o consultassem, talvez Muricy estivese hoje trabalhando com a geração Neymar. Mas Ricardo Teixeira, ou seja lá quem o fez na CBF foi diretamente ao técnico, deixando o clube à margem. A postura desagradou a Muricy. E quando a Diretoria do Fluminense foi ouvi-lo ( sim porque nem no Fluminense acreditavam que ele ficaria), e ele deixou claro que o contato tinha sido direto ao mesmo tempo em que era informado que o clube não recebeu nenhum representante da CBF, o trato com o Fluminense foi mantido.

É lógico que Muricy gostaria de dirigir a Seleção Brasileira. Neste momento, o homem Muricy mostrou que mais importante que metas individuais, valem os acordos. Mudar regra do jogo enquanto o jogo está sendo jogado é mau caratismo. No jantar definitivo, Ricardo Teixeira saboreou a sobremesa sozinho. Muricy se retirou da mesa, preferindo o compromisso ético.

Em seguida vieram os problemas com o Maracanã. Onde o Fluminense mandaria seus jogos ? ( Uma boa lição para os dirigentes tricolores pensarem seriamente em investir num estádio, ou como a moda determina, numa arena própria, ou em sociedade com outro clube desabrigado). Na siderúrgica Volta Redonda ? No desajeitado Engenhão ? Muricy defendeu arduamente o Engenhão. Sabia da importância da torcida em um clube que havia beirado a degola meses antes. O acordo com o Botafogo saiu por um pedido de Muricy para que os dirigentes levassem a bom termo a conversa com os dirigentes botafoguenses. E, dizem, por uma conversa que ele teve com Joel Santana. Mas esta fica para o rol das lendas.

Pois o Engenhão se mostrou uma moradia desconfortável. O time perdeu pontos importantes jogando lá. Até que Muricy lançou o apelo, seguido pelo elenco, para a torcida ir ao estádio. Justo no jogo contra o Grêmio, time que fez a melhor campanha do segundo turno do campeonato. E uma firme vitória de 2 a 0 sobre os gaúchos ratificou o que Muricy sabia: aquele time era movido a motivação, no sentido mais puro desta palavra, já que não ocorrerarm atrasos em prêmios e outros problemas financeiros com jogadores como é comum ocorrer.

Outro abacaxi indigesto foi lidar com jogadores de renome com seguidas contusões e tendo que lançar mão de alguns novatos, já que os substitutos naturais, por força,obra e graça de empresários, debandavam do clube. Montar e remontar o time, trabalhar egos para mudanças de função, crises existenciais de alguns jogadores ( me recuso a usar a terminlogia "peça") como Washington e Fred. Aproveitar os exemplos de profissionalismo de Deco, Marquinhos e Conca para os demais componentes do grupo e, simplesmente, falar a linguagem dos jogadores. Nisso, Muricy já era reconhecido. Foi um meia veloz e inteligente que habitou o meio de campo do São Paulo junto com Pedro Rocha, entre outros.

O que chama a atenção em Muricy é que ele é um líder que não parece ter estudado para isso. Não é elegante, exibe uma extensa barriga, cabelos desalinhados, pouca preocupação em escolher palavras suaves. Não me parece que tenha frequentado seminários de liderança e motivação. Não me parece que tenha assessores de imagem, ou atue no esquema de dupla com um segundo obscuro no melhor estilo Murtosa.

Mas é um líder. O grupo reconheceu. Nas fases mais complicadas, depositaram a confiança no técnico. Uma única vez, Conca reclamou de uma substituição. Meia hora depois já havia entendido. Muricy ouviu o técnico adversário dar a ordem para "quebrarem o Conca", e um Neanderthal começou a segui-lo pelo campo.

Em outra situacão, o meia Marquinhos insistia em ter lugar no time. Muricy o fez ver que realmente tinha. Vários, de meia, de volante, de lateral-esquerdo e de ponta esquerda.

Washington quase expeliu seus "stents" com o jejum de gols. Muricy o elogiava ao final dos jogos. Bem, o gol do título saiu de uma bola desviada por Washington.

Fred, rebelde, foi chamado às falas. Pouco fez, mas tê-lo em campo foi importante na reta final. Os goleiros apresentaram seguidos problemas. O time encerrou o campeonato com o seu terceiro goleiro sendo saudado como um dos heróis.

Pois é, Muricy tem razão, ele agiu, mas, ao contrário do ditado popular, não por si, mas pelo grupo, e fez o grupo agir pelo grupo, ainda que um ou outro episódio estressante tenha ocorrido.

Sem dúvida, Muricy Ramalho é um dos mais gratos personagens do esporte, e justo no futebol, onde ética, correção, trabalho em grupo, observar o indivíduo e seu potencial, e sobretudo, com isso tudo, ser um vencedor.

A única pessoa que conheço que revogou a Lei que tem seu nome.

4 comentários:

  1. Parabéns por comemorar mais um título Nacional.

    O que me chama a atenção é que os técnicos mais badalados atualmente são, tal qual Muricy, boleiros que falam a língua dos jogadores:

    Andrade - Campeão Brasileiro 2009
    Joel - Campeão Carioca
    Renato Gaucho, entre outros

    Parabéns por mais um texto delicioso e, como sempre, visto por um ângulo que ninguém vê.

    Bons ventos

    ResponderExcluir
  2. Afiado Elevê,
    bom te ler,
    debulha aí...
    abraço!

    ResponderExcluir
  3. Muito legal. Realista! Parabéns pelo texto e pelo título.

    A citação de Muricy da lembrança (sonho) com Telê. num dupla associação de tricolor e mentor é prova irrefutável de todo o seu texto.

    Abraço,

    Cecesa (amigo tricolor do Vina)

    ResponderExcluir
  4. Seu texto é excelente, sempre disse isso. Seu olhar, diferente do comum. Mas dessa vez... Não consigo gostar do Muricy, não adianta, o que o cara prega como futebol não é o que eu quero como futebol. Além disso, sempre tive um pé atrás. E parece que tem gente que concorda comigo (ou sou eu que concordo com ele?): http://www.ricaperrone.com.br/2010/12/o-deus-do-futebol/

    ResponderExcluir