domingo, 27 de junho de 2010

Ave, Maria

Joaquim havia passado o dia cuidando da parte dos fundos da pequena propriedade nos arredores de Jerusalém. A cerca havia sido derrubada por membros de uma seita messiânica-anarquista. Joaquim, casado com Ana, era, como Ana também, descendente de David. Os descendenetes de Saul, David e Salomão passavam por dias difíceis.
Entrou na casa de barro e madeira, simples mas aconchegante, cansado e irritado. Os romanos insuflavam os anarquistas e os messiânicos, para enfraquecer as milenares tradições dos hebreus. Então Joaquim vociferava e estava quase determinado a se juntar a um pequeno grupo de resistentes, às margens do Mar Morto.
Joaquim e Ana não tinham filhos e estavam livres para ir para outro lugar. Ana, no entanto, frequentava o Templo e sua linhagem lhe proporcionava algum prestígio em Jerusalém. Apesar da vida simples, podia se dizer que o casal era abastado. Tinham terras nas nascentes da Samaria e outros bens materiais. Joaquim se perturbava por não conseguir prestígio. Ana badalava em Jerusalém.
Mas, dizíamos que Joaquim entrava em casa mal-humorado. Pois bem, não é que se deparou com Ana em uma túnica quase transparente transbordando desejo e se insinuando ?
Joaquim estava preocupado com os sábios do Templo e resolveu comparecer ao dever de esposo. Enquanto penetrava em Ana pensava, pensava, até que se deu conta que Ana poderia estar num período fértil. Isso o iluminou. Satisfez Ana como poucas vezes, embora, coitada, nem imaginava que seu prazer tinha sido quase resultado do maquiavelismo de Joaquim. Sim, Joaquim queria um filho. E faria deste filho um mito, um líder, um revolucionário.
Ana percebeu a gravidez só depois de 90 dias. Afastou-se um pouco do Templo e se preparou para a chegada da criança. Joaquim imaginava um rapaz forte, alto como ele, mas com os traços mais harmônicos de Ana.
Bem, veio ao mundo uma menina, para frustração de Joaquim. Não se fez de rogado. Batizou-a de Mirian, que em grego pronunciava-se M'ria, ou Maria, e cujo significado é "rebelião".
Desde cedo, Joaquim seguiu todos os passos de Maria. Via na jovem determinação e coragem. O que sempre o animava.
O casal teve ainda mais dois filhos, Marta e Eliazar. Marta parecia viver à sombra de Maria mas era muito mais alta e teve uma puberdade precoce, sendo mãe com apenas treze anos de idade. Todos achavam Marta feia, desajeitada e envelhecida alguns anos mais  que Maria. Joaquim ardilosamente deixava a crença correr. Marta era uma inútil e até para preparar um licor de uva pedia ajuda a Maria que fazia tão rapidamente que alguns se assustavam.
Eliazar era um tormento para os pais. Fraco, doente física e mentalmente. Parecia precisar de um empurrão para tudo. No templo, era zombado e seu nome em grego, Lázaro, motivo de trocadilhos da época.
Maria foi crescendo, sempre determinada, e muito bonita. Era o orgulho de Joaquim. Ana a apresentava com igual orgulho no Templo. Todos a cortejavam mas Maria mantinha uma altivez de musa. Joaquim lhe ensinava muito. Maria gostava do que ouvia, entendia cada vez mais os problemas do domínio romano, da forma como subvertiam os clãs tradicionais judeus, ou cooptando ou jogando às feras, no sentido de alimentar que revoltosos maltrapilhos e malucos gnósticos os considerassem inimigos. Joaquim estava neste segundo grupo. Maria percebeu isso rápido.
Visitou os essenos, seita gnóstica que acreditava que o Messias já havia chegado e esperavam seus sinais. Foi a oráculos, visitou o Egito, teve acesso a manuscritos gregos em Alexandria, graças à sua grande beleza e capacidade de diálogo. Enfim, Maria se tornava uma mulher completamente diferente de suas contemporâneas. Para não provocar suspeitas ou inveja, ia ao Templo, comportava-se em público como as outras mulheres, presenciava o apedrejamento de prostitutas com o comportamento que convinha embora aquilo lhe causasse enorme revolta.
Aos poucos, foi traçando um plano mental, catalisado por Joaquim. Era necessário criar um fato, um mito, uma forma que aglutinasse os judeus contra o domínio romano, contra costumes auto-destrutivos e resgatar o brilho dos tempos de Salomão. Além dos romanos, preocupavam os judeus a enorme quantidade de tribos árabes nômades, cujas religiões tribais e rituais de sacrifício assustavam a população rural. Era preciso inspirar essas tribos também. Brigas entre fariseus, saduceus e essênios completavam o cenário de caos.....
O filho mais velho de Isabel, João, era carismático. Maria começou por manipulá-lo. Estudava horas seguidas com ele, principalmente sobre a influência dos escritos gregos. Colocou em João a noção do "demiurgo". Um belo dia João despareceu.
Maria não sabia o que fazer com o tempo perdido. Estava então com 22 anos e seu pai dava sinais de que não duraria muito tempo. Logo, Joaquim morreu. Lázaro arrasou-se, mudou-se para o sul e passou a viver uma vida de pastor.
Muito cortejada, Maria pensou num casamento de conveniência, com um oligarca, confiando em si para emprenhar neurônios adentro de seu marido as suas ideias.
Nesse meio tempo, João reapareceu como uma figura exótica. Vivia maltrapilho, de doações, com meia dúzia de seguidores às margens do Jordão e inventou um ritual próprio que atraía cada vez mais gente - o batismo. Tratava-se de mergulhar o transeunte curioso no Mar Morto, recitar algumas orações antigas tradicionais judias com algumas palavras da seitas gnósticas. O cidadão saía atordoado e de certa forma acalentado pela bondade e atenção de João, que logo foi apelidado de "Batista". Maria pensou de novo em João. Sentou-se com ele para conversar. Depois de algumas horas, João pediu licença a Maria e voltou com uma pequena cigarrilha, cujo fumo era adocicado. Maria perguntou o que era. Uma erva, que João, em suas andanças pela Etiópia havia experimentado. Maria quis provar. Logo percebeu o efeito do fumo. Sentiu-se estranha, ausente, calma, com memória prejudicada. Quando o efeito passou, apesar de ter feito gosto, concluiu que aquilo não levaria ninguém a lugar nenhum e que João não era a pessoa para liderar, ou para ser elevado à condição de um mito ou símbolo. Além disso, João esperava o Messias. Maria não gostava de associar suas ideias ao Messias. Segundo os escritos, o Messias chegando, os problemas terminariam, e ela sabia que não terminariam, que a luta era árdua.
Um belo dia, Maria tropeçou numa trilha e torceu o tornozelo. Anoitecia e ela tinha dificuldade de se locomover. Surgiu um senhor mais velho, educado, alto, forte, com rosto vincado e raros olhos azuis. Não era bonito, mas era um tipo diferente. Ajudou Maria a caminhar um pouco e colocou-a numa carroça, cheia de peças de madeira. Seu nome era José. Era tarde e José resolveu abrigar Maria, sempre tratando-a com muito respeito. Morava numa oficina de carpintaria que tinha lá seu charme. Maria começou a simpatizar com José embora a diferenca de idade entre os dois parecesse considerável. Conversaram muito. José era inteligente, mas parecia pouco ativo. Também era da linhagem de David, embora nunca tivesse tido contato com Joaquim.
Ao amanhecer, Maria levantou. Tinha a certeza de estar na casa de um homem forte de boa índole. Perguntou se poderia ir ao Templo em sua companhia. José ficou encabulado, mas aceitou. Ele olhava Maria como uma moça bonita e seu coração estava partido por relacionamentos anteriores que fracassaram.
Maria e José se tornaram próximos e um dia, já tarde da noite, na oficina de José, Maria seduziu-o. José estava sem jeito, mas Maria era realmente uma mulher admirável. Maria era virgem, a relação não poderia se consumar sem a comunicação às famílias e os rituais do matrimônio. Mas a temperatura entre os dois elevava-se. José penetrou com cuidado. Maria nunca sentiu nada parecido com aquilo. Apesar da dor, puxava José contra seu corpo e beijava-o com sentimento verdadeiro.
Estava consumada a união. José não tinha ascendentes vivos. Maria apresentou-o a Ana que não fez gosto. Queria Maria com um dos grandes do Templo. Maria rompeu com Ana.
Decidiram-se mudar para Nazaré. José era um excelente carpinteiro, o sustento estava garantido. Maria, com sua personalidade forte foi à Samaria e negociou um dos lotes que tinha uma nascente que era de Joaquim. Estavam ambos estabelecidos.
Mas Maria não via suas ideias caminharem e decidiu que não era ela que iria conduzir. Precisava de outra pessoa.
Certa noite, Maria acordou e levantou-se para beber água. Viu então um jovem sentado ao lado da janela e estranhou. Observou ser um romano em roupa de legionário. Antes que pronunciasse qualquer coisa ouviu: "Ave, Maria. és bela, tem graça, os judeus e os romanos precisam de ti, do vosso ventre deverá sair um fruto bendito que será o responsável por tudo. Agora me despeço. Ave." E entregou um pedaço de papel escrito em grego e que dizia "Apóstolos".
O fato confundiu Maria bem por dois dias a ponto de José estranhar. No terceiro dia, Maria decidiu ter um filho. José estranhou o furor de Maria, mas, até gostou, pois a vida em Nazaré estava pacata demais.
O primeiro filho de Maria recebeu um nome grego, contrário à tradição hebraica. Tadeu. O que louva a deus. Parte do plano de Maria, o nome tinha que ser mais que um nome, uma marca.
Tadeu era alto como o pai e o avô. Trabalhador, correto, desde muito cedo mostrou que era ativo. Mas não era intelectualmente bem dotado. Até um pouco inocente e distraído demais em determinados momentos.
O segundo filho de Maria recebeu o nome hebraico de Jeshua. Era um filho indesejado. Maria nem sabia quando teria dado início sua gravidez. Teve logo depois o terceiro filho, Jacob. No parto de Jacob, Maria qusse morreu e decidiram que mais filhos não teriam.
Maria continuava a ler, estudar, mas tinha três filhos...estava num momento de desistir de seus planos de fomentar uma revolta, ou inaugurar um movimento consistente que fosse.
Mas eis que um dia, Maria vai ao Templo com Jeshua. O pequeno tinha apenas 4 anos de idade. Como sempre, os velhacos do templo cercaram Maria e a cortejaram.
Foi nesse momento que Jeshua olhou em volta e falou: "Os senhores carregam falsidade e vaidade em suas faces. Seu objetivo único é comer minha mãe."
Um choque total. Maria inclusive se intimidou.
Jeshua continuou: "E isso aqui é um Templo ou uma Termas disfarçada ? Honram a quem ? A Deus ? Aos romanos? Vocês não são homens, são fantoches, imbecis, que mal sabem ler..."
Neste momento, um dos sábios do Templo interrompeu o garoto e disse em tom jocoso "E por acaso, o pequeno, sabe ler ?". Jeshua fulminou-o com os olhos e todos perceberam, e ficaram assustados. "Se sei ler ? Sei ler e sei ver além dos livros, mas isso não vem ao caso. Discursaria por muito tempo aqui e os senhores não entenderiam nada, e não vim aqui para isso, só estou expressando meu desagrado."
O clima ficou insustentável, Maria recolheu Jeshua e foi embora, Os sábios do templo se entreolhavam. Era um petiz e falava como um rei...
Em casa Maria repreendeu Jeshua. Ouviu o que não queria. "Mãe, sei o que você pensa. Não trabalho como Tadeu mas li tudo o que você tem guardado. Já entendi o que querias na vida. Saiu errado, né ? Mas sou seu filho e gostei da ideia. Preciso lhe revelar um segredo. mas que fique entre nós dois só". Maria parecia não acreditar no que ouvia de um garoto de 4 anos, estava em choque e ao mesmo tempo com esperanças retomadas.
"Mãe, quando eu estava um dia brincando lá pelos outros lados da colina um pastor de ovelhas tocava seu rebanho com dificuldades. Resolvi perguntar se ele precisava de ajuda. O homem estava exausto. Conversamos um pouco, tomamos leite juntos, mas o homem me parecia muito cansado. Suas últimas palavras foram "...droga de Messias...esperamos e nada, minha vida se desgraçou graças a Herodes e aos romanos...." e morreu com a cabeça pendendo sobre meu colo.
"Ninguém me obstruirá, minha mãe de minha revolta, de minhas atitudes. Pagarão caro pelo que fizeram. O Messias viria para salvar o mundo, eu venho para expor o que ele tem de pior."
Essas palavras bateram fundo em Maria. E era verdade...salvar o mundo....ora, que falácia...expor os podres é a melhor forma de provocar mudanças.
Curioso que Jeshua se comportava como uma criança normal em boa parte do tempo. Brincava igual aos irmãos, fazia perguntas típicas de crianças, mas por vezes seu olhar parava e ficava fixo no horizonte. Também passava muito tempo em silêncio e lia muito. Cresceu forte como Joaquim e Tadeu. Ambos eram maiores que Jacob, que também era de altura superior à média da população.
José tinha uma relação tranquila com seu filho do meio. Respeitavam-se. Na verdade, quando Jeshua completou doze anos, Tadeu, cinco anos mais velho, dominava a carpintaria, ele próprio Jeshua também estava indo bem no ofício e José estava cansado.
Um dia, José morreu. Maria o sepultou, como membro da linhagem de David, junto a Joaquim. Os três filhos deveriam agora prover o sustento da casa. Jeshua decidiu que era hora de botar em prática o que ele e Maria sabiam. Maria, que conseguia manipular Jeshua quase sempre não o demoveu de viajar.
Jeshua passou 8 anos viajando. Foi a Alexandria, conseguiu embarcar num navio para Creta e de lá para Atenas, reuniu o que pode de leitura, debateu com filósofos e pensadores gregos e resolveu arriscar e ir a Roma. O risco de virar escravo ou gladiador era enorme. Jeshua tinha se tornado um homem forte fisicamente e de raríssimos olhos azuis. Ainda por cima aprendera com egípcios e espartanos técnicas de luta e combate. Desembarcou num porto do Adrático e andou pela península italiana até Roma.
Certa vez uma patrulha de cinco legionários o abordou. Quem era e o que queria. Jeshua desprezava os romanos e seu comportamento não agradou a patrulha que resolveu detê-lo. Jeshua matou os cinco legionários em menos de dez minutos. A notícia do massacre correu o Lácio e Jeshua passou a ser procurado e temido ao mesmo tempo.
Entrou em Roma com roupas impróprias, mesmo para um plebeu. A guarda pretoriana o deteve. Possuído de uma força  que parecia vir de dez homens, Jeshua resistiu, acumulou mais oito em sua coleção de homicídios, mas acabou detido. Foi levado a um militar de alta patente, Pôncio Pilatos. Pilatos ordenou que o mesmo fosse levado à prisão e depois ser lançado às feras no Circo. A mulher de Pôncio estava vendo e pediu ao marido que o deixasse partir, era apenas um camponês que não falava latim e não parecia ameaça de tão maltrapilho que estava. Merecia o exílio apenas. Pilatos ordenou então que remasse nas galés de volta à Palestina. Entre este dia e o embarque, se passaram quatro dias em que Jeshua e a mulher de Pilatos passaram fazendo sexo ininterruptamente.
Logo após a partida, o romance entre os dois se tornou conhecido de Pilatos. Este entrou em depressão, perdeu prestígio em Roma e foi deslocado para ser o chefe da remota província da Palestina.
Voltando à Palestina, Jeshua reencontrou sua mãe. Maria estava furiosa e desta vez, deu as cartas. Jeshua estava arrependido de suas aventuras inconsequentes, mas tinha acumulado enorme conhecimento e falava grego fluentemente.
Maria resolveu que faria um período de monitoramento de Jeshua. Foram convidados para um casamento em Caná. Jeshua flertava com uma vadia de Magdala na festa quando Maria o chamou. "Acabou o vinho...a festa vai acabar, vamos embora." Jeshua perguntou se havia água em tonéis. Escondido, deu dois dracmas para um sujeito trazer vinho vagabundo de um lugar qualquer e trocou os tonéis.
Maria percebeu o ardil, mas ninguém acreditou que ele não tivesse transformado água em vinho. Seguiram-se uma série de fatos que lhe deram fama de milagreiro. Ao mesmo tempo, Jeshua encontrou o cartão com a palavra "Apóstolos" que sua mãe recebera há 30 anos. Resolveu que para empreender o que queria precisava de uma espécie de guarda pessoal. Maria entendeu e tratou de providenciar. Foi para a alcova com alguns legionários. Travou conversas com famílias conhecidas. Alguns apenas se aproveitaram de Maria. Outros prometeram pelo menos ouvir o que seu filho tinha a dizer e largaram a carreira militar. Os filhos de algumas famílias tradicionais de Nazaré se juntaram. Os "apóstolos"estavam reunidos. Eram em cerca de cinquenta, entre legionários romanos desiludidos, hebreus recrutados na base da negociação, pescadores do Mar da Galiléia. 
Jeshua cuidava da doutrina e das táticas e Maria da logística e das operações de risco, como a invasão do Templo, quando tudo foi quebrado, num escândalo de enormes proporções.
O nome de Jeshua crescia em popularidade na Palestina. Os romanos já o temiam, Pilatos queria-o morto, e a elite judaica que o mito se desfizesse. Naqueles tempos apareciam Messias de dois em dois anos, todos caindo em descrédito. Jeshua era ungido, sem querer porque não era essa sua proposta, como o verdadeiro Messias. Isso assustava a elite judaica
Certa ocasião, em uma colina perto de Jerusalém, Jeshua reuniu mais de 5 mil pessoas para ouvi-lo. O movimento popular começava a ganhar corpo e importância. Maria negociava no Templo como amenizar a situação. A esta altura, outra Maria, a de Magdala, acompanhava Jeshua. Maria não a suportava como não suportava nenhum relacionamento afetivo do filho. Tadeu e Tiago largaram a carpintaria e tornaram-se "apóstolos". Tadeu, particularmente, como sempre, era disciplinado e disciplinador. Era o guarda-costas pessoal de Jeshua.
Milagres lhe eram atribuídos. Uma oliveira atingida por um raio assustou os "apóstolos". Jeshua se irritou e atribuíram o raio à sua irritação, mas, ledo engano, Jeshua era um ecologista. Ficou furioso com a destruição de uma árvore, como demonstrava enorme apreço por animais e plantas. 
Um dia Marta comunicou a Maria que Lázaro havia morrido e que Jeshua, poderia tentar, com seus poderes, ressuscitar o tio.
Jeshua viu uma oportunidade de dar uma lição em Maria e naqueles que o usavam como "mito vivo". Foi à tumba de Lázaro e constatou que havia ainda batimentos cardíacos muito fracos ( graças às suas leituras de grego, aprendeu um básico de anatomia). Pediu que preparassem um elixir complicadíssimo, cheio de ervas e de uma planta que ele usava de vez em quando para mascar que lhe tirava o apetite e lhe injetava uma energia adicional. Fez um teatro, gritou, gesticulou, deu a Lázaro, desacordado, o elixir,  e em meia hora o moribundo apresentava sinais de vida, para hora e meia depois pedir um prato de comida.
Maria ficou absolutamente pasma. Como ele tinha feito isso ?
Carregou sua curiosidade durante todo o caminho de volta a Nazaré. Jeshua tinha um indisfarçado sorriso cínico. Quando Maria o interpelou e perguntou como fez, Jeshua foi esquivo: "Meu tio era um fraco, merece morrer duas vezes." Maria se horrorizou. Jeshua era um homem com princípios que conflitavam com o de um profeta ou de um líder de uma revolta.
Jeshua estava se cansando e sendo solicitado demais. Num domingo, sentado num burrinho, foi a Jerusalém. A notícia se espalhou. De novo, uma temeridade, mas Jeshua estava absolutamente certo que tinha conseguido apoio popular suficiente para que não o fizessem de mártir. Maria concordou com a ida a Jerusalém justamente pelo motivo oposto. Já via a exposição do filho como forma de torná-lo mito. Os dois finalmente tinham se tornado opositores dentro da mesma causa.
A população de Jerusalém recebeu Jeshua como uma celebridade. Jeshua foi ao Templo, rezou com os "apóstolos" e se retirou, acampando na colina próxima chamada "das Oliveiras". Montou seu quartel general. Além dos apóstolos, já contava com apoio de muitas pessoas, infelizmente despreparadas e pensando apenas no movimento "espiritual".
Um espiâo mandado por Herodes e Pilatos foi ao acampamento. Voltou e descreveu a figura de Jeshua. A espinha de Pilatos gelou. Seria o mesmo homem que havia sido perdoado em Roma e comido sua mulher ?
Exigiu confirmações. Precisava ver o homem de perto.
Maria torcia por uma batida dos romanos. Que levasse ao cadafalso, ou à cruz aquela turba que visava o poder temporal. Descobriu entre os apóstolos um ex-legionário romano, conhecido como Iscariotes. Ofereceu-lhe uma quantia em dinheiro para informar aos romanos onde estava Jeshua, pois ela previa um conflito sangrento e queria negociar. O trânsito de Maria no templo a credenciava para tal. Iscariotes aceitou o acordo.
O plano de Maria era o de fazer Jeshua fugir e reaparecer em outra região e assim continuar o mito.
Os romanos apareceram de madrugada, quase pela manhã. Seguiu-se um banho de sangue. Vários apóstolos pereceram, restando apenas doze deles, Jeshua não teve oportunidade de reação. Foi acorrentado. Maria chorava pois a coisa não saiu como planejado e a outra Maria, de Magdala, fugiu para não ser estuprada.
Levado ao Palácio onde ficava o Governador romano, Jeshua pensava no que fazer e, principalmente, como se safar. Sentia que a coisa estava ficando complicada para seu lado, pois os guardas eram muitos e de elite.  Tentou todos os seus truques e sua habilidade em lutas mas nada funcionou.
Chegando cara a cara com Pilatos, pode se dizer que talvez ali tenha começado a maior sessão de humilhação que um ser humano já passou. Pilatos o reconheceu como o perdoado que o traíra com a mulher. Jeshua foi surrado por uma horda de guardas romanos e Pilatos o chicoteava e cuspia. Em meio à surra, um representante dos sábios do Templo adentrou o salão e falou com Pilatos: "Estamos na Pessach. Vamos reforçar nossa autoridade perante os revolucionários com o sacrifício deste farsante."
Pilatos entendeu rápido. O sacrifício seria público horas antes do Shabat. E, ao contrário das crucificações de transgressores famosos não seria no deserto e sim na colina Gólgota.
Maria tentou acesso ao Palácio e ao Templo. Não conseguiu. Seu desejo de ofuscar o estrelato de Jeshua tinha passado dos limites para o coração de uma mãe, que disparado, só tinha alívio na constatação de que Tadeu e Jacob sobreviveram.
Ainda na cela, Jeshua continuou a sofrer atrocidades. Num acesso de fúria, conseguiu estrangular um despreparado guarda de Herodes e gritou: "Não se trata desta forma um herdeiro de David."
Essa frase ecoou degraus acima do palácio e providenciaram-lhe a coroa de David que julgava merecedor. Infelizmente a mesma havia de ser cravada e não colocada. Preso por correntes, Jeshua recebeu a coroa que lhe feriu o perímetro craniano profundamente. 
Manipulando o que sabia ser seu fim pediu que lhe fosse concedido um último desejo. Herodes pessoalmente foi saber do que se tratava. Jeshua pediu ervas. Uma africana e outra dos caules do lótus. Herodes riu e aceitou. Jeshua orientou como preparar cada uma e ingeriu. Além do efeito alucinógeno da africana e da sensação de paz que a mesma transmitia, e com a de lótus preparou um poderosíssimo analgésico.
Enquanto isso, divulgava-se o martírio de Jeshua. Maria estava inconsolável. Mesmo divergindo do filho, era demais para uma mãe se sentir culpada. Não tinha ideia do que ainda veria.
Após o meio-dia, Jeshua foi levado para exposição pública. Estava arrebentado e o sangue que corria do alto da cabeça o cobria até os pés. No entanto, seu semblante estava sereno e algo ausente, fruto dos preparados com as ervas. Ao olhar o rosto de Jeshua a população se assustou. Como podia um homem sofrer tanto e se manter sereno ? Era o filho de Deus !!! Era o Messias !!!
Pilatos e Herodes perceberam que o plano poderia ir contra o planejador e resolveram abreviar tudo.
Mandaram Jeshua carregar as toras da cruz até o Gólgota sob chicotes. Jeshua tombou três vezes no caminho. Na terceira, um desavisado tentou ajudá-lo. Ao olhar sua expressão serena, contribuiu para espalhar que era o Messias.
Maria via tudo à distância e chorava. Queria sua própria morte agora no lugar da do filho. Maria, a outra, de Magdala, carregava o bebê que só ela sabia quem era o pai e sentia que o único homem que amou de verdade morreria em breve.
Sem delongas, espetaram com enormes cravos e pregos Jeshua na cruz. Levantaram a cruz no topo do Gólgota. Dois outros condenados seriam crucificados próximos. Um deles, ouvindo os gritos de Messias, pediu perdão a Jeshua. Jeshua respondeu: "Como sois covarde. É fácil pedir perdão por tudo à porta da morte. O Mal o espera". O outro o ironizou. "Se és o Messias porque não te salvas?"Jeshua gritou: "És autêntico, não perdes a ironia nem na agonia. Tens fibra. Estaremos juntos  aos vermes em breve."
Jeshua agonizou sob o sol da segunda lua após o equiñócio da primavera. E esta seria a data da celebração, coincidindo com a Pessach judaica.
Maria recebeu o consolo de um velho amigo influente, Jose de Arimatea. Assistia a uma certa distância.
Pode se dizer que a inauguração do Cristianismo foi neste momento. Maria viu a cruz, o martírio e o povo acreditando estar diante do Messias.
O movimento revolucionário tinha um ícone, um símbolo. Era a cruz. A partir deste instante, e por dois mil anos, a cruz se tornaria onipresente onde estivesse o culto ao Cristo, ao Crucificado. Maria visualizou  a singela geometria da cruz como a insígnia e o sacrifício como o símbolo do desprendimento em nome das ideias.
Quando os legionários se afastaram para deixar os chacais e corvos devorarem o cadáver, Maria e Arimatea retiraram o corpo da cruz e o levaram a uma gruta, untado em óleo e em um rolo de tecido.
Maria convocou como pode os apóstolos sobreviventes e juntos começaram a traçar os planos de como sobreviveriam e as ideias de Jeshua seriam transmitidas a mais pessoas. A primeira providência foi analisar o que havia ocorrido no Monte das Oliveiras. Apontado como culpado, Iscariotes foi amarrado a uma tamareira e linchado até a morte.
Dois dias depois, Maria e os apóstolos deram início ao plano, que não podia demorar. Retiraram o corpo da gruta onde estava e que já começava a se tornar local de visitação e levaram ao mesmo sítio onde estavam sepultados Joaquim e José. Arimatea cuidava das financas e de acalmar os temerosos líderes religiosos judeus e os romanos, que sentiram que a flecha saíra ao contrário do alabarde.
Combinaram de se encontrar em 40 dias, e nesse meio tempo, espalharem-se pela Galiléia espalhando o martírio de Jeshua e o desaparecimento de seu corpo. O povo ouvia, incrédulo, Jeshua morreu e seu corpo sumiu. Muita gente jurou ver e ouvir Jeshua. No sul, lembraram do caso de Lázaro e a suposta ressurreição do suposto Messias ganhou corpo.
Quarenta dias passados, Maria e os apóstolos, que agora já eram muito mais que os onze remanescentes, se reuniram. A esta reunião utilizaram o código de Espírito Santo que ganharia outros contornos com o tempo.A repressão romana e do judeus crescia. Fariseus, zelotes e romanos não só perseguiam os essênios e outros messiânicos, como tinham conflitos sérios entre si. Era hora de abandonar a Galiléia. Decidiram viajar para a Fenícia, Egito e Constantinopla.
Neste momento, Kephat, talvez o mais obtuso de todos os mais próximos de Jeshua, reinvindicou o posto de líder. que lhe teria sido conferido pelo próprio Jeshua. Maria não questionou e o sacramentou como o primeiro representante de Jeshua, o primaz. A ele caberia também escolher seu sucessor, de forma que haveria sempre um homem vivo santo e imbuído dos poderes de Jeshua. Isso só servia para aumentar o mito.
Maria foi para Éfeso, onde ficou muito tempo. Juntou-se a ela Maria de Magdala, que ganhou a simpatia de Maria quando apresentou o casal de filhos de Jeshua, David e Hannah. Os apóstolos saíram fugindo e deixando lenda, como Jakob, irmão mais novo de Jeshua que chegou, pelos árabes e tribos bérberes a entrar nos domínios romanos pela Península Ibérica e deixou a lenda de Santiago. Kephat, já adotando o nome latinizado de Pedro, almejou grandes feitos. Depois de Éfeso, foi para Roma onde foi inapelavelmente assassinado. Pouco ou nada acrescentou. Muito mais fizeram Saulo, vítima de um estratagema de Maria para aderir à causa cristã, André, Tomé, e os irmãos de Jeshua.
A turbulência na Galiléia crescia e tornou-se imprudente insistir na base da nova religião ( só entendida como tal cinquenta anos depois da morte de Jeshua) em Jerusalem ou Cesarea, a Jerusalem rebatizada.
Maria não se sentia segura em Éfeso. e lentamente arriscou-se pelos domínios romanos.
Foi quando observou, com satisfação o culto a Jeshua na forma de cruz e a ela, Maria. Na verdade, em algumas regiões, Maria era a heroína primária, sendo Jeshua um revolucionário brilhante mas pouco prudente. Haviam cerimônias específicas em honra a Maria. 
Ao passar pelo Norte da Itália, Maria encontrou-se com o romano convertido Lino, nomeado por Pedro seu sucessor. Passaram uma semana juntos conversando e delineando as doutrinas e estratégias. A libertação da Galiléia deveria começar por Roma. Combater o inimigo estando dentro dele, como uma doenca, como um vírus. Sacramentou Lino e seus sucessores e o presenteou com o pano que envolvera o corpo de Jeshua enquanto esteve na gruta. Fomentou a revolta em Roma e nas principais cidades do Império. Lino a obedeceu e este passou a ser o segredo mais bem guardado dos que passariam a se sentar no "trono de Pedro"
Maria já era uma senhora, sentia a vida chegar ao fim e queria proteger os netos, já iniciados nos ensinamentos mas que estavam longe da genialidade de Jeshua.  
Maria ordenou que os escritos oficiais não falassem mal dos romanos, ao contrário, deveriam seduzi-los. A arte que Maria sabia melhor que ninguém. Seguiu pelas Gálias onde a convivência de romanos com tribos do oeste europeu eram pacíficas. Sentiu-se segura por fim junto aos bretões, primeiro os do continente e depois os insulares. Morreu ao sul da fortaleza romana no rio Tâmisa, conhecida como Londinium. Maria de Magdala ficou no continente. Os netos de Maria fizeram bem o dever de casa. Pregaram a divindade de Maria e Jeshua junto às comunidades romanas remotas e as não-romanas.
O cristianismo estava com seus alicerces montados. Deus, uno e Todo-Poderoso, uma versão modernizada do Javé dos judeus, Jeshua, seu porta-voz e guerreiro e Maria, a mãe do enviado de Deus.
Os romanos adotaram o cristianismo como religião oficial uma vez que o paganismo estava emprenhando valores que a sociedade romana precisava extirpar e o cristianismo trazia disciplina, ascetismo, e rituais muito mais pacíficos.
O Império Romano do Ocidente caiu. O Império Romano do Oriente, em que pese boa parte dos invasores da Europa aderirem aos ensinamentos cristãos, ficou como guardião do Cristianismo oficial. A influência oriental em Bizâncio era grande. A aceitação de uma presença feminina forte era totalmente contra os tradicionais costumes, contra o tradicional papel da mulher no Oriente. A mulher seduzia, desviava o homem de suas atribuições primárias. Fortunas se perdiam por causa de mulheres. Eram capazes de ganharem seu sustento com a fraqueza maior do homem, o sexo, enfim, eram inconvenientes à estrutura do poder bizantino que se replicava na Igreja.
Em 431, na mesma Éfeso que acolheu Maria por vários anos, realizou-se um Concílio, por ordem do imperador Teodósio e de um patriarca homossexual de Constantinopla, Nestório.
A história contada acima, sobre Maria, foi então apagada e destruída, bem como a união de Jesus com Maria Magdalena e a existência de seus sucessores. Para não desagradar totalmente os cultuadores de Maria, deram-lhe o papel de mulher santa e virgem, que nunca experimentou prazer carnal, era a mãe do Deus terreno, apenas isso, uma espécie de rainha, sem papel ativo algum. 
Mas o inconsciente coletivo transmitido fez com que várias aparições de Maria vistos por esquizofrênicos ou forjados, a colocassem num panteão de santidade. 
A mulher que foi forte, inteligente, corajosa e por vezes pragmática, calculista e porque não, maquiavélica, deu lugar a uma santa pura e sofredora, um modelo para a mulher cristã.
Contrário à natureza de Maria e das mulheres, claro. 


2 comentários:

  1. não sei se foi inspirado por Saramago, não importa. mas é que o tema é recorrente na obra do sujeito e os parágrafos embolados idem. O texto, como sempre, é impressionante. Vai escrever assim lá na Roma Oriental.

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  2. Um belíssimo texto narrando detalhes importantíssimos que a igreja católica NÃO REVELA até os dias de hoje.E revela também que a Política ainda está a frente da evolução obrigatória de todo nós,filhos de Deus.
    É por isso que eu sou macumbeiro...rsrsrrsrs
    Um grande abraço e parabéns.
    Rogério Ducasble.

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