quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Momento Inesquecível

A Copa do Mundo de 1970, no México dificilmente será substituída nas minhas lembranças sobre futebol por outro evento ou episódio mais marcante. Nestes dias em que muito se falou de um fim de Campeonato Brasileiro eletrizante e vimos o sorteio dos grupo da Copa das Vuvuzelas de 2010, cheguei à conclusão que muita coisa mudou entre 1970 e 2009. Para começar, minha idade, claro. E, naturalmente, o próprio futebol.
A idade que eu tinha em 1970 ( 7 anos) me levava ao lúdico, à idolatria de Pelé, Tostão, Rivelino, Gerson, Jairzinho e até de alguns que apareceram menos, como Paulo César e Marco Antonio. Hoje, 40 anos mais velho, sou crítico, rabugento, vejo mais o erro que o brilho, enxergo más intenções onde elas provavelmente não existem e entendo como sensacional algo que em 1970 era mais visível que é o improviso, o jogador voluntarioso, o drible. Com toda a sinceridade, não consigo ver o Petkovic de 2009 sentado nem no banco de reservas do América da década de 70, que tinha no meio-de-campo Ivo, Thadeu, Braulio e Gilson Nunes.
Por isso, acho que a Copa de 70 foi o meu momento inesquecível no futebol em todos os tempos. Para começar a justificar isso, cabe ressaltar que, apesar de 7 anos de idade, registrei e nunca mais apaguei da memória alguns detalhes daquela Copa. Lembro, por exemplo, do sorteio dos grupos. Os cabeças-de-chave eram México (anfitrião), Itália (campeã européia), Inglaterra (campeã do mundo) e Alemanha Ocidental (vice mundial e europeia). O Brasil não era cabeça-de-chave. No sorteio, caiu no Grupo C, logo chamado de Grupo da Morte, com Inglaterra, Tchecoslováquia ( que seria campeã europeia dois anos depois) e Romenia, que tinha desbancado Espanha e França nas Eliminatórias.
João Saldanha foi substituído por Zagalo alguns meses antes. A campanha nas Eliminatórias tinha empolgado, sob o comando de Saldanha. O Brasil massacrou Colômbia, Venezuela e Paraguai numa sequência de jogos fabulosos de Tostão. Entre as Eliminatórias e a Copa, Tostão levou uma bolada no olho e quase ficou fora da Copa. E esse problema seria o que o iria tirar dos campos precocemente, em 1973. Pelé tinha tido um mau ano em 66, mas recuperara-se em 67 e 68. Em 1969, Pelé começou a dar sinais de esgotamento. Foi quando surgiu a notícia do problema de visão que ele teria. Hoje, sabe-se que Pelé era fisicamente mais bem preparado que 90 % dos jogadores de seu tempo e sua presença em qualquer jogo parava até guerra. Ele simplesmente estava esgotado fisicamente, porque tinha que jogar tudo que é jogo. Não parece muito hoje, mas o jogo de Pelé dependia de suas arrancadas, de uma velocidade impressionante e de uma impulsão que o fazia, com 1,70, subir mais que gigantes de 1,85. Haviam também nomes bons em profusão atuando no Brasil: Rivelino, Paulo César, Jairzinho, Edu ( do América - RJ), Ademir da Guia, Samarone, Dirceu Lopes, todos de meio-campo. O Brasil era pobre em zagueiros e goleiros. Volantes, como hoje vemos jogar então, nem pensar. Talvez Dudu, do Palmeiras fosse o mais próximo do que se chama de "volante de contenção" atualmente. Haviam Zanata, Liminha, Denílson, Zé Carlos, todos muito técnicos. E havia Piazza, que marcava mais duro.
Pois bem. Imagine-se no lugar de Saldanha para acomodar isso tudo no time. Ele avançou Tostão para centro-avante, deslocou Jairzinho para as laterais, recuou um pouco Gerson e colocou o ponta Edu, do Santos. Piazza era o meio-campo recuado. A zaga era Britto e Joel ( ou Fontana, do Vasco). Nas laterais, Carlos Alberto e Marco Antonio, um moleque promissor do Fluminense. No gol, problemaço: Felix, Leão e Ado ( Corinthians) disputavam quem seria titular, mas nenhum inspirava confiança.
Quando Zagalo chegou, resolveu fazer umas mudanças. Tirou Joel da zaga e recuou Piazza. Lançou Clodoaldo, jovem do Santos, habilidoso mas não muito bom marcador, como volante, e surpreendeu o mundo ao escalar Rivelino na ponta-esquerda.
O Brasil entrou em campo para a estreia contra a Tchecoslováquia com Felix, Carlos Alberto, Britto, Piazza e Marco Antonio ( substituído por Everaldo, que ganhou o lugar); Clodoaldo, Gerson e Pelé; Jairzinho, Tostão e Rivelino. Ou seja, eram cinco jogadores de meio-ataque no mesmo time, um cabeca-de área transformado em zagueiro, uma lateral-esquerda com dois novatos e um goleiro prá lá de inconsistente. Lembro que cheguei da escola e liguei a televisão, em preto-e-branco, hipnotizado para ver o jogo. Começou mal. Uma bobeada de Britto e Carlos Alberto e um tcheco faz 1 a 0 logo aos 15 minutos. Para completar, comemorou com um sinal da cruz. Como pode ??? País comunista aceita prática religiosa ??? Roí unhas 25 minutos. Aí Pelé cavou uma falta inexistente na entrada da área, O goleiro tcheco Viktor era considerado um dos melhores do mundo, mas quase tinha tomado um chapéu do meio-de-campo de Pelé a alguns minutos e parecia nervoso. Uns 5 estavam colocados para bater a falta, que pedia a clássica batida por cima da barreira, buscando o alto do gol. Nada disso. Rivelino deu um pique e soltou um foguete bem em cima do tal do Viktor. O cara estava na bola, mas não deteve o chute. 1 a 1 e Rivelino comemorando como se estivesse exorcizando traumas antigos, agitando os braços com força.
O segundo tempo começou com o time europeu medroso e aparentemente cansado. Aí, Gerson, como faria outras várias vezes na Copa, fez um lançamento de uns 5 quilômetros para Pelé, que estava marcado. Entra em cena o gênio. Pelé se antecipou ao marcador, com sua impulsão fenomenal aparou a bola no peito lá na cota dos três metros de altura, deixou cair no chão, e empurrou para o gol. Saí igual um louco correndo pela casa. Era um golaço. Eu não escondia o fascínio de ver o meio-campo do Brasil tocando a bola, de uma lateral a outra, sempre parando em Gerson. Numa dessas escalas forçosas no canhotinha, ele descobriu um Jairzinho tentando bater o recorde mundial dos 100 m rasos pela direita e pimba ! outra bola de 5 quilômetros. Jairzinho fez graça, jogou por cima do agora totalmente apavorado Viktor e emendou para o gol vazio. Fui para a janela, olhei a bandeira que tinha feito em verde e amarelo e que modéstia à parte era a maior da rua em que eu morava. Eu estava vibrando. Mas ainda tinha mais. Numa jogada individual, Jairzinho driblou a defesa adversária toda e fez o quarto. 4 a 1. Desci para a rua, festa na rua, com muito papel picado e a criançada se divertindo.
O jogo seguinte era contra a Inglaterra. O mais temido. Os 4 a 1 tinham me dado a falsa impressão que tudo seria fácil. Não lembro de detalhes do primeiro tempo, apenas do chute de um atacante inglês no rosto de Felix. Aliás, neste jogo, Felix justificou sua convocação. No tradicional chuveirinho inglês, Felix se virou socando bolas de tudo que foi jeito. Gerson não estava em campo. Paulo César, em seu lugar, meio isolado na esquerda. A defesa inglesa parecia a muralha de um castelo. Pelo menos, os ingleses não aprontavam muito com a bola no chão.
No intervalo fui para o quarto e rezei. Juro.
No segundo tempo o Brasil dominou mas nada de gol sair. Enfim, Tostão fez uma jogada maluca na meia-esquerda e cruzou para Pelé, que, com calma ajeitou para Jairzinho que, sem calma nenhuma, disparou um foguete para ver se aquele impressionante goleiro segurava. Gol. Não lembro do resto do jogo. Desci para a rua para comemorar de novo. Uma cena desse dia nunca mais esquecerei. Passou na minha frente um Opala pintado de verde e amarelo com o placar do jogo Brasil 1 Inglaterra 0. Pensei: qual maluco faria isso ? Acho que muitos. Havia uma euforia absoluta no ar.
O terceiro jogo foi contra a Romenia e o menos emocionante pois o Brasil já estava classificado e logo da cara fez 2 a 0, com o Paulo César arrebentando na ponta esquerda. Mas a Romenia fez um gol. Então, me lembro que, com raiva, me debati e bati com a cabeça numa mesa de tampo de mármore que meus pais tinham na sala. Na mesma hora, Brasil  3 a 1. Meu pai pegou gelo, botei na testa, doía prá burro, mas eu nem ligava para a dor. Mas a Romenia fez o segundo e meu pai, gaiato, me disse: enfia a testa de novo na mesa para ver se o Brasil faz mais um gol. Lembro como se fosse ontem.
No mata-mata, o Brasil caiu contra o Peru. A lembrança das Colômbias, Venezuelas e Paraguais arrasados me deixavam calmos. Desconhecia eu completamente que os peruanos haviam eliminado a Argentina e para falar a verdade, eu não sabia que o futebol argentino era forte. Ouvia-se muito do Uruguai na época, fruto do trauma de 1950, mas pouco da Argentina. Início de jogo, 2 a 0, Tostão fazendo gol, parecia tudo tranquilo até que Britto e Felix resolveram complicar. Mas no final, com uma atuação de gala de Tostão, ficou 4 a 2. Me lembro de encarar o resultado como normal. Estava ficando convencido.
Aí veio o Uruguai. Pela primeira vez na minha vida, virei de costas para um jogo. Quase fui para o quarto chorar. O Uruguai fez 1 a 0, num frango premiado de granja de Felix e o Brasil não jogava nada. Para completar, os uruguaios se impunham na porrada e na arrogância. Tremi. De repente, Clodoaldo, que eu já até tinha esquecido que era jogador, recebeu um passe de Tostão e mandou para o gol. 1 a 1. Curioso que fiquei quieto. Só pensei na hora: falta um gol do Gerson...vai ser hoje...hoje, nem sei se o Gerson estava em campo, pois estava às voltas com uma contratura.
E não vou pesquisar para ver se estava ou não porque no segundo tempo surgiu em campo um herói que depois fui ter enorme orgulho de ver jogando com a camisa do Fluminense: Rivelino. O cara resolveu encarar os uruguaios, com dribles, elásticos, tomado porrada e levantando e encarando os celestes. Rivelino fez o segundo tempo contra o Uruguai encarnando a raça e a categoria. Mas o gol demorou até quase 30 minutos do segundo tempo, quando Jairzinho deu uma disparada e recebeu passe de Tostão para desempatar. Aí o Brasil abriu a caixinha de maldades contra o Uruguai. Pelé tentou gol de tudo que foi jeito. Rivelino pisava na bola e provocava os uruguaios. Carlos Alberto e Pelé se revezaram em retribuir as "gentilezas" dos adversários no primeiro tempo. Uruguaios na roda. Para fechar o show, um gol de linha de passe de treino com Pelé ajeitando para trás e Rivelino soltando uma bomba no canto. Rivelino comemorava com raiva. Transbordava alívio do stress, de sua entrega em campo. Talvez essa comemoração tenha sido a cena que mais me marcou nessa Copa.
Fim de jogo e a televisão começa a passar a prorrogação de Itália e Alemanha. Terminou 4 a 3 para os italianos, mas tiveram umas cinco viradas no jogo...que jogão...e eu não desgrudava da televisão. Só quando acabou, desci para a tradicional comemoração na rua e de lá de baixo, olhar o bandeirão que tinha pendurado da janela e que a esta altura já provocava certa ira de vizinhos de três andares abaixo, mas que sentiam que não podiam pedir para retirar...
Entre o jogo do Uruguai e a final eu lembro de muita coisa. O clima era positivíssimo. Haviam dúvidas se Gerson jogaria. Felix iria optar por jogar de luvas pela primeira vez na carreira...umas coisas esquisitas eram ditas sobre uniformes da seleção ( só recentemente soube que tratou-se de uma briga entre Adidas e Puma para calçarem os pés do Pelé na final). Os palpites diziam que seria 3 a 0, 3 a 1. Mas a Itália tinha um belo time, misto de Inter e Cagliari.
O jogo começou e eu tinha um nome em mente: Luigi Gigi Riva, artilheiro do italiano 69/70 jogando pelo modesto Cagliari. No início, Felix fez uma defesa de tirar o fôlego, mas me lembro de ficar calmo. Pelé subiu num cruzamento improvável de Rivelino e fez 1 a 0. Aí o Brasil resolveu dar show. Ao contrário de Jairzinho que jogava mal, Rivelino colocava sangue na ponta da chuteira. Facchetti não tinha a quem marcar: ora era Tostão, ora era Jair, ora era Pelé. Mas numa troca de bola boba na defesa, Clodoaldo foi dar de calcanhar e o bom Boninsegna ( que depois fez dupla de ataque com o Fabio Capello, hoje técnico da Inglaterra, na azzurra) aproveitou e empatou. O time brasilero ficou nervoso ainda mais com um gol anulado no final do primeiro tempo pelo juiz, que apitou fim do tempo antes de Pelé chutar livre de dentro da área.
O segundo tempo começou calmo, mas lá pelos 25 minutos eu já estava com várias almofadas em cima escondendo o rosto. O jogo persistia 1 a 1. Mas, numa jogada de força de Jair após bom passe de Everaldo, Gerson emendou uma bomba de canhota. Do meio para a frente, era o único jogador que não tinha marcado. Pronto, agora tinha feito. Golaço, e ânimo quadruplicado na Seleção Brasileira, italianos cansados e de guarda-baixa...showtime...
Gerson, em outro lançamento de 5 quilômetros para Pelé escorar de cabeça e Jairzinho entrar com bola e tudo, comandava o toque de bola no meio e o show. Dribles desconcertantes de Rivelino, jogando de novo um partidaço. Itália na roda, com Gerson apontando e distribuindo o jogo. Na jogada mas bonita de toda a Copa, Clodoaldo se livra de 4 italianos no meio, joga para Tostão que lança para Jairzinho como ponta-esquerda. Bola para Pelé na meia-lua da grande área. Sem olhar, o toque para o lado onde entrava na velocidade do som, o capitão Carlos Alberto para soltar uma bomba num gol apoteótico.
O desfecho ideal. O estádio idolatrando o futebol brasileiro. Unanimidade internacional. Era o time dos craques. Nunca se vira domínio tão predominante em finais de Copa desde 1958. Para completar conquista definitiva da Jules Rimet.
No dia da final não desci para festa tradicional na rua. Lembro de deitar no sofá da sala e ficar olhando para o céu. Como criança, a conquista daquele time era minha também. Me senti no topo no mundo. Mas com um sentimento de tranquilidade, e não de dominância. Era bom ter vivido aquilo. Era como se eu estivesse estado em campo.
Vi muita coisa emocionante no esporte depois disso. No futebol também, nas vitórias de Senna, no vôlei, nas lutas de Muhammad Ali. Sempre me envolveram emocionalmente. Mas acho que só em 1970 eu entrei em campo com a seleção.
Talvez isso explique porque lembro mais da Copa de 1970, quando tinha 7 anos, do que da 1974, quando tinha 11.
No dia seguinte da final. Com o Brasil tri-campeão, fui conferir a minha super-bandeira. Uma ventania da noite a rasgara e ela tinha ido embora. Chorei porque queria guardá-la. Era o meu símbolo particular de ter jogado naquela Copa.

Um comentário:

  1. Sobre momentos que nos marcam, é impressionante como o futebol aparece de várias maneiras na minha vida.

    Sobre 70, não vi a copa ao vivo mas assisti o tape de todos os jogos inteiros. E sei que é completamente diferente de assistir ao vivo. Era sem dúvida uma seleção mágica, mas há muitas coisas interessantes. A primeira delas é poder ver aquela quantidade de craques em campo cometendo suas pixotadas, que não foram poucas, mas é claro que não entram nas coletâneas. Outro detalhe foi o trabalho de ambientação à altitude realizado, e perceber que fez a diferença, com quase todas as partidas vencidas no segundo tempo, com o time brasileiro sobrando em campo. Mais um detalhe: as condições da Itália na final, depois do jogo épico contra a Alemanha na semi. Por fim, é fato que Pelé estava no auge, o que por si só já garantiria meio título. Se ao lado de Tostão, Rivellino, Gérson etc...

    Outra coisa é essa mania de fazer comparações entre os times de várias épocas. Algo quase impossível e sempre desfavorável aos times atuais. Mas em se tratando de seleção brasileira, a de 70 foi eleita o melhor time de todos os tempos. Tendo a discordar, pensando que qualquer seleção brasileira que tivesse Pelé e Garrincha juntos seria melhor que a outra, com apenas um. De quebra, vale lembrar, Nilton Santos, Zito, Zagalo, Didi...

    Mas a seleção que me marcou mesmo, questão de geração claro, foi a de 82. E talvez considerem uma heresia o que vou escrever agora, mas acho que o time que levou três gols de Paolo Rossi era mais completo que os tricampeões.

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