domingo, 4 de outubro de 2009

O segundo convite, mas este é com RSVP

Já habito a Terra há algum tempo. E, na maior parte deste tempo, no Brasil. E confesso que nunca havia visto um sentimento de orgulho pelo Brasil e pelo Rio tão disseminado e com poucas divergências como foi a escolha da cidade como sede das Olimpíadas de 2016.
Na minha opinião, pouco estudada, mesmo deixando passar 48 horas da escolha para tentar entender um pouquinho do emocional da coisa e lendo algumas publicações que já abordaram o assunto, concluí que há um simbolismo por trás desta escolha. Há um convite. Um convite para o Brasil mostrar para o mundo os pré-requisitos para ingressar no que antigamente era chamado Primeiro Mundo. Para o Brasil mostrar sua alegria, receptividade, o bom clima do Rio de Janeiro, as paisagens espetaculares, enfim, coisas que sabemos. Mas, para além disso, mostrar seriedade, mostrar uma sociedade mais justa, tentar encontrar soluções para os cinturões de pobreza e o caótico transporte público. E, principalmente, passar por cima das brigas politico-partidárias, já que até 2016 haverão duas eleições gerais e duas municipais.
A estabilidade política do Brasil foi necessária para sustentar a candidatura. Sua evolução também o será. A tentação de transformar Olimpíada e Copa do Mundo em ítens de campanha é enorme. Até aí, vá lá. Mas se o viés começar a dar impressão de "Jogos Bolivarianos", ou os "Jogos dos Trabalhadores", ou os "Jogos dos Excluídos", ou como uma versão única do já muito chato e pouco importante "Forum Social" que é paralelo ao Forum de Davos...hmmm...sei não.  Hitler usou as Olimpíadas como propaganda. Os acochambrados Jogos de 1948, em Londres, foram, na prática, a celebração da vitória na guerra. Os Jogos de Moscou e Los Angeles, em 1980 e 1984, viram seu brilho embaçado por boicotes causados pela "guerra fria". Foram edições que ficaram claramente empanadas pelo conteúdo político que circunstanciou um evento que deveria ser só esportivo.
Mostrar ao mundo que o Brasil é capaz de iniciar a trilha de um crescimento sustentado, com distribuição de renda mais justa, com redução da violência nos grandes centros e, principalmente, a um nível de custos que não seja pornográfico, e, durante os Jogos deixar correr no tradicional clima praieiro-festivo do carioca, sem politizações, seria o salto triplo olímpico ideal.
Para mim, o recado foi claro. Vocês querem e acham que podem fazer Copa do Mundo e Olimpíada em dois anos ? Pois bem, concordamos, mas estaremos de olho se podem mesmo. E, se bem sucedidos, bem-vindos ao grupo de liderança mundial.
Frio assim ? Frio assim !
Porque lembro do início da década de 70. A geopolítica era outra, o governo era uma ditadura militar apoiada pela Otan. Havia um incipiente e pouco preocupante movimento guerrilheiro. Apesar da ditadura, o clima era de tranquilidade geral. Os indicadores eram de país pobre, agrário, sub-desenvolvido. Mas o Brasil exibia índices de crescimento exorbitantes. A classe média crescia, o brasileiro já não achava Paris um local para embaixadores e meia dúzia visitarem e depois contarem, orgulhosos, como foi a noitada no Moulin Rouge. Em 1972, o Brasil foi apontado como uma das forças econômicas da década seguinte. Naquela época, imaginar Rússia e China adeptas do livre mercado era coisa para doido mesmo. O Brasil seria um dos "grandes" do mundo capitalista, apesar de uma economia estatizante.
O historiador Eric Hobsbawn várias vezes insinuou não entender bem porque a América Latina não conseguia traçar a trajetória de modernidade da Austrália. Além da cultura européia, a América Latina teve uma rara miscigenação de raças, tem recursos naturais, teve centros de estudo entre os melhores do mundo. O que estava diferente ? Buscou no modelo oligárquico dos colonizadores ibéricos uma explicação. Como este flagelo perdura até hoje no Brasil, botar a conta neste problema é o caminho mais fácil. Mas ter um povo de índole ovina complementa a vocação da pobreza e do atraso, e isso é mais complicado analisar.
Mas, enfim, até 1973 o Brasil viveu um convite para a elite ocidental. E, então veio o primeiro choque do petróleo, recessão nos Estados Unidos, crise de liquidez e o "plano Marshall" silencioso para a América do Sul minguou. Na abertura da Copa do Mundo de 1974, o Brasil teve papel especial. Bem, era o campeão do mundo de futebol, mas o tratamento foi VIP, inclusive com a eleição improvável de um brasileiro para a Presidência da FIFA. Mas o governo ditatorial não soube reagir às mudanças na economia, fingindo que tudo ia bem, como convem aos regimes de força, e aos poucos, submergiu, encontrando seu fundo de poço no governo de João Figueiredo. Foram anos de vergonhas nacionais, cujo maior símbolo talvez tenha sido o roubo da Jules Rimet, derretida. Perdemos este convite.
Depois, o modelo econômico e político brasileiro foi para o brejo. Inflação alta, protecionismo exagerado, meios de controle de imprensa. Lembro com vergonha de ter que viajar pelo mundo com um maço de dólares ou francos suíços e os "travellers checks". Nada de cartão de crédito internacional. E ainda teve um período em que, se você quisesse viajar havia um depósito compulsório alto, restituído sabe-se lá quando. O Brasil se isolou.
Nossa redemocratização foi no mínimo engraçada. Primeiro numa eleição indireta, cujo eleito morreu e assumiu o vice que era o presidente civil do partido dos militares ! O sujeito, com seu vasto bigode, bem que tentou, mas mergulhou o Brasil num regime inflacionário que era motivo de piada no mundo todo...depois, a campanha baixa de 1989, que resultou num presidente que foi apeado do Poder dois anos depois. Ou seja, nossa estabilidade é recente, e como um adolescente, ainda carregada de hormônios novos, defesas ideológicas apaixonadas e tentações imediatistas.
Mas, sem entrar no mérito de quem fez ou quem não fez, o fato é que o Brasil de 2009 está se jogando na área, para, no caso de um pênalti, converter-se em liderança mundial. As coisas conspiram a favor. O Presidente tem carisma e apoio popular. A crise de 2008 foi uma cacetada nas economias do eixo central ( EUA, Japão, Europa, tigres, onças e assemelhados, e os "novos capitalistas" do Leste Europeu). A China vai bem, obrigado, e dos que aumentam sua importância no cenário mundial, o Brasil saiu  fortalecido. Indicadores da economia vão, com cuidado, melhorando. O Brasil vem com relativo sucesso sediando eventos internacionais, tanto esportivos como políticos. Por aqui, a violência é urbana e mesquinho-capitalista, não tem nada de ideologia política, o que minimiza o problema do terrorismo. Enfim, as condições estão aí.
E, na última sexta-feira, 2 de outubro de 2009, o Brasil caiu na área e foi dado o pênalti. Para ser gol, precisa ser bem cobrado. Não há espaço para discursos de desculpas. Se o pênalti for perdido, a torcida não vibra. Ninguém gosta.
Sendo assim, além do que precisa ser feito diretamente para sediar uma Olimpíada, os brasileiros precisam entender o que significa ter um IDH ruim. Precisam saber quantos analfabetos ainda temos. Qual o montante de dinheiro lavado em coisas escusas que permeiam o noticiário. Porque não há nas grandes cidades ( com a provável exceção de Curitiba) um planejamento urbano mínimo, com transportes de massa decentes. Porque a Baía da Guanabara continua poluída. Enfim, cabe aos governantes atuais e que vierem até 2016 trocar a retórica do "tudo vai bem" pela da realidade constatada, e o ataque claro aos problemas de raiz e não aos sintomas.
Porque a Olimpíada traz essa responsabilidade ? Pois, na minha visão, é um convite para entrar no Country Club. Desta vez, sem a motivação da política bipolarizada capitalismo-comunismo da década de 70. Desta vez, a opinião de todos os habitantes da Terra, com exceção dos brasileiros, dependerá dos sinais que o Brasil der.
Afinal, de que vai adiantar sediar tantos eventos de Primeira Divisão se continuarmos jogando como país de Segunda ?
O convite para o Brasil na década de 70 ficou sem resposta e quem convidou também não se importou. Agora é diferente, fomos convidados e temos que confirmar que podemos ir à festa.
E, deixando claro, não se trata de copiar modelos ideológicos, políticos, econômicos. Ou se engajar num receituário de um clube fechado. Trata-se de colocar a ética em tudo na pauta do desenvolvimento. Ética, etiqueta, como responder a um convite com RSVP, e claro, comparecer.

3 comentários:

  1. É sempre muito bom ler uma opinião que não seja radical, para um dos lados da dicotomia tão encontrada nos dia de hoje nos articulistas de plantão.

    Equilibrada, de alguém que enxerga além da emoção dos próximos 7 anos, e analisa de uma forma clara o que é necessário para que Copa e Olimpíadas sejam bem sucedidas, além delas mesmo, é um deleite, numa noite de primavera.

    Valeu LOMB

    ResponderExcluir
  2. LV,
    Admiro cada dia mais teu equilíbrio em questões que as pessoas tratam com a paixão de um Fla X Flu (sem referências ao resultado de ontem). Ando cansada da turma que só reclama, mas não sugere melhoras, não efetiva ações, só joga pedra. Todos que vivem o dia-a-dia do Rio de Janeiro conhecem as dificuldades que a cidade enfrenta. Todos sabem a necessidade de mudanças radicais. Mas poucos são capazes de enxergar além disso. Temos uma oportunidade de ouro nas mãos para mudar o destino do Rio. Mas precisaremos de um grande pacto que envolva toda a cidade para efetivar ações que permitam ao Rio aproveitar ao máximo esse convite, esse momento, para tornar-se realmente a vitrine de um Brasil que está pronto para novos desafios.

    ResponderExcluir
  3. O texto esta ótimo, mas o seu comentário da foto toca exatamente no ponto que me preocupa: emoção na escolha...

    Se o Rio for uma cidade boa para quem mora nela, vai ser boa para qualquer coisa e para qualquer um. A Olimpíada é um detalhe. "O" detalhe.

    Abração,

    Giorgio Seixas

    ResponderExcluir